30 de dezembro de 2010

Ecos de um Réveillon

Os sons característicos de uma festa dominavam o ambiente. Vozes incompreensíveis se perdiam no meio dos convidados se confundido com a música ao fundo, baixa como rezava as regras da etiqueta. “Música alta era coisa de pobre”, costumava repetir Jonas. Aquele era o primeiro réveillon que Telma e o esposo promoviam em seu apartamento recentemente adquirido em Copacabana, rua secundária, onde, da janela, pescoço esticado e um pouco de boa vontade, podia-se contemplar um canto do mar.
Família e alguns amigos íntimos foram convidados para a recepção. À meia-noite, todos desceriam a praia para assistirem a queima de fogos. Telma se multiplicava para agradar aos convidados enquanto Jonas entretinha um bando de homens segurando copos de whisky nas mãos. Telma, enquanto observava o marido, pensou no quanto eles haviam progredido nos últimos anos. E se não eram abastados, aos menos levavam vida confortável. Entretanto, a constrangia o profundo desprezo com que Jonas, aprendiz de rico, se referia aos mais pobres, atitude que fazia questão de não ocultar.
— Bando de gente sem fibra, que não tem ganas de vencer na vida. Ficam lá, nos seus empreguinhos de merda. E estes que dão pra mendigar? Trabalho tem demais. O que falta é coragem de meter as caras. Neguinho quer mais é uma esmolinha, batente que é bom nada – discursava Jonas para seus convidados.
Alguns concordavam com leves acentos positivos de cabeça. Outros procuravam disfarçar o cortante incômodo daquelas palavras.
Ocupada em suas tarefas de anfitriã, por um momento Telma perdeu de vista o marido, ocultado no meio dos convidados. Queria lhe alertar que já estava quase na hora de todos descerem. Distribuindo sorrisos a esmo, procurou pelo esposo em alguns cômodos da residência. Foi encontrá-lo ao telefone no quarto do casal, entre sussurros.
— Hoje não vai dar, meu bem...não, não...claro que eu amo! Mas amanhã eu dou uma escapada. Bota aquela camisola... é... aquela mesma... Tá bom... Um beijo nesta boquinha...
Afastou-se do umbral da porta antes que Jonas a descobrisse. As pernas bambeavam, os lábios tremiam. O marido tinha uma amante. E o calhorda ainda escolhia as camisolas dela! Procurou dominar-se do choque. Precisava evitar um escândalo. A casa estava apinhada de familiares. Seus pais, a mãe de Jonas, viúva do General Passos Filho, todos exibindo a artificial felicidade de final de ano. Trancou-se no banheiro e, sentada no vaso sanitário, destilou seu solitário ódio ao marido traidor. Engoliu o choro, olhou-se no espelho, retocou a maquiagem, e voltou para a festa.
Sentia-se a única infeliz em torno do turbilhão de rostos congestionados pela alegria iluminada pelos fogos que pipocavam no céu. No meio da areia recebeu mecanicamente os votos de feliz ano novo dos casais amigos. Jonas largou um beijo estalado em sua face. Neste momento, Telma pensou em Judas.
Caminhando de volta para casa, no meio da multidão ela tinha os pensamentos perdidos. Jonas continuava a vomitar seu desprezo pelos miseráveis.
— Todo dia deveria ser réveillon em Copacabana. Isto aqui tá pra turista ver! Limparam o bairro dos mendigos. Livraram-se da escória, dona Matilde.
A mãe de Telma riu de modo forçado.
No dia seguinte, Jonas inventou uma desculpa qualquer e foi encontrar a amante. Assim que se viu sozinha, Telma pegou o carro e saiu sem destino por uma cidade deserta de gente em virtude do feriado. Cruzou a zona sul e no Centro da Cidade, entrou em ruas decadentes. Naquele dia, entregou-se a todo o tipo de homem que atravessou o seu caminho. Não escolheu raça ou tipo físico, mas fez questão de trair Jonas com os personagens das camadas mais baixas da sociedade carioca. Telma conheceu os mais sórdidos hotéis de encontros do Centro do Rio. Fornicou em sobrados abandonados. Até dentro de banheiros fedorentos de botequins ela copulou. Encontrou-se com mendigos, cafetões, malandros de rua, bandidos, michês, gente desocupada, gente que trabalhava, vigias de edifícios, garçons que voltavam de seus restaurantes, lixeiros, motoristas de ônibus, taxistas, guardas de trânsito, flanelinhas. O 1º de janeiro daquele ano ficou conhecido nas redondezas como o dia em que uma riquinha enlouquecida alegrou sexualmente os desvalidos do Centro.
Chegou em casa junto com as primeiras horas da noite. Jonas ainda não voltara. Despiu-se de suas roupas suadas pela aventura, meteu-se debaixo do chuveiro e deixou a água morna envolver seu corpo cansado da batalha. Durante o banho, chorou pela primeira vez desde que soubera da traição. Depois, riu. Riu muito. Gargalhou até engasgar-se. Risos entrecortados por espasmos.
Nove meses depois, Telma deu a luz a um menino. Sabe-se lá filho de quem. A gravidez modificara Jonas. Até a amante ele largou. Na maternidade, era a alegria em forma de pai. Vendo o marido com a criança em seus braços, Telma deixou escapar um sorriso malicioso. Um doce sorriso de vingança, ainda que saboreada apenas no seu íntimo.

19 de dezembro de 2010

Dois Natais

Mais um natal se avizinhando em nossas vidas. Alguns foram ótimos, outros nem tanto, todos, entretanto deixando uma pequenina marca em nossas existências. Época de comprar presentes e, sobretudo de ganhar, ganhar, ganhar! Tá certo, o natal se transformou numa data consumista, onde uma reflexão sobre quem é e quais foram os propósitos do aniversariante enquanto esteve entre nós ficam para segundo plano, contudo, curto o natal e sua atmosfera de solidariedade envolvendo boa parte da raça humana neste dias que antecedem a data. Sociologismos à parte, dois natais marcaram especialmente minhas lembranças do tempo de criança. 

O primeiro natal do qual minha já quarentona memória consegue buscar foi também a primeira noite em que eu me lembro de ter passado acordado, coisa audaciosa para quem contava apenas seis ou sete anos de idade. Nesta noite, ganhei de presente um fusca de corrida movido à corda e uma ambulância cujo controle remoto funcionava ligado ao veículo através de um fio. Brinquedos paleozóicos em comparação ao que encontramos atualmente nas lojas e sites especializados. Todavia, o que mais me encantou naquela data, sendo o responsável direto pela minha insônia natalina, foi um livro de capa dura, com dimensões de um volume de enciclopédia, onde passeavam impressas as primeiras histórias em quadrinhos de alguns dos mais famosos personagens de Walt Disney. Varei a madrugada no meu quarto, sem que Morfeu me sequestrasse, sendo cúmplice das aventuras inaugurais do Mickey, Pateta, Tio Patinhas, Peninha, Pato Donald, Gastão, Huginho, Zezinho e Luizinho. Quando a fome me assaltava, ia à ponta dos pés até a sala e servia-me de castanhas, avelãs e frutas sobreviventes da ceia. 

Outro natal inesquecível ocorreu por volta dos meus dez anos de idade. Eu queira por demais ganhar uma mesa de futebol de botões. Minha mãe comprou a tal mesa e a escondeu atrás do armário do seu quarto. Desconfiado, passei dias indo sorrateiramente ao esconderijo e, sem que ninguém percebesse, com a ponta dos dedos furava o papel pardo que a embrulhava aquele retângulo ocultado pelo móvel, procurando indícios de que ali houvesse uma mesa. Para o meu desespero, a mesa que minha mãe comprara não era verde e sim na cor marrom do compensado. Picotei o embrulho por dias a fio, como uma cerimônia, uma novena, só obtendo a certeza de que eu ganharia a minha mesa de botões quando avistei o quarto de circulo que demarca a área de escanteio do campo de futebol através de um dos furinhos no papel de minha autoria. Na noite de Véspera do Natal eu fingia nada saber e, próximo à meia-noite, mamãe insistiu para que eu fosse desejar um Feliz Natal a um coleguinha do conjunto residencial onde eu morava. Claro que pelo adiantado da hora não havia amiguinho algum na área do prédio. Quando retornei, estavam todos com cara de que nada sabiam e encostada na parede minha mesa de futebol, com dois times de botões completos. Papai Noel havia passado e deixado um presente para mim, afirmavam os adultos. Não me lembro de haver um dia acreditado no bom velhinho e só muito tempo depois contei a minha mãe sobre as minhas excursões pré-natalinas atrás do seu armário. 

Natais felizes, de uma época mais romântica, que temo estar se perdendo.

12 de dezembro de 2010

Pequeno Conto Nada Natalino

Foi contratado para ser o Papai Noel de uma família classe média. Animaria a criançada surgindo da chaminé, gritando “ho, ho, ho!” e distribuindo os presentes, em geral lembrancinhas, bem ao espírito mesquinho dos natais de hoje em dia. Como estava na de pior, aceitou.

Na véspera de natal, roupa vermelha, barba postiça e saco nas costas, lá se foi ele em direção a casa combinada. Mas anotou o endereço errado e desceu pela chaminé da casa ao lado. Estava  vazia. Papai Noel foi seduzido pelos eletrodomésticos que decoravam a casa. Dariam uns bons tostões na mão de um receptador que ele conhecia. Esvaziou o saco de presentes, encheu-os com o que pode carregar. Teria um natal muito mais sortido do que o último. Não esqueceu de levar um ursinho de pelúcia para a filha e um carro de controle remoto para o moleque, seu xodó. Corroído pelo remorso, mas vencido pela tentação que o consumismo da data impunha, deixou os presentes para os que estavam ausentes, acompanhados por um bilhete. “Papai Noel esteve aqui. Feliz Natal!”

As crianças da casa ao lado deixaram de acreditar em Papai Noel,  que os decepcionou, esquecendo-se deles que foram bonzinhos durante todo o ano. A menorzinha jurou que tinha visto o Bom Velhinho no telhado dos vizinhos. Papai Noel recebeu nota zero em comportamento naquele natal.

7 de dezembro de 2010

Jesus de Copacabana

    


Ernestina, sentimentos escravizados pela devoção ao cristianismo, com olhos marejados de lágrimas rogou a irmã.

— Pelo amor de Deus! O menino-jesus não!

— E como vamos pagar a conta de luz que vence amanhã, mana? Com a sua fé no bonequinho?

Esta contenda vinha de anos. As dificuldades financeiras que as duas irmãs solteironas passavam as obrigavam, vez por outra, a se desfazerem das relíquias que a família acumulara durante décadas e agora dominavam os espaços do minúsculo conjugado alugado em Copacabana.

Desfizeram-se da prataria, bibelôs de louça, conjuntos de porcelana, até mesmo a cristaleira, herança da avó materna. Ernestina recebia estas perdas sem dizer um “ai”. Tal qual uma santa martirizada, aceitava o destino dado às peças que a irmã se desfazia para obter uns trocados. Mas deu para reclamar quando Raimunda decidiu vender um presépio com figuras em biscuit que todos os natais decorava um canto do conjugado e havia chegado ao Brasil no princípio do século XX por intermédio dos seus ancestrais portugueses. “Não serve pra nada, só ocupa espaço”, costumava dizer a mais pragmática das irmãs. Ernestina abominava a ideia de vender imagens religiosas. Para ela, temente a deus até as entranhas, aquilo tinha cheiro de sacrilégio, além de uma afronta à memória dos seus antepassados.

Inicialmente, Raimunda sacrificou os animais do presépio. Em seguida, os reis magos, vendidos em lote único a Agemiro Caldas, um antiquário da Rua Barata Ribeiro. Os olhos do homem reluziam em ganância após cada telefonema de Raimunda. O antiquário já possuía até um comprador para o presépio, mas o problema em ele não ter em mãos todo o conjunto de peças. Aquelas imagens chegando em doses homeopáticas o irritavam profundamente. Podia fazer uma oferta pelo que sobrara, Maria, José, o menino e a manjedoura, porém, temia que a as irmãs julgassem baixa a sua proposta e todo o plano viesse por água abaixo. Agemiro Caldas assim, violentando sua cobiça, tentava exercer as virtudes da paciência e esperava.

Não precisou esperar muito para se apossar do casal bíblico. Uma dívida com o açougue obrigou Raimunda a vender os pais do Cristo. Agemiro Caldas voltou saltitante para a loja. Desembrulhou os dois personagens e os colocou na prateleira onde estavam as outras peças do presépio estrategicamente arrumadas, vaquinhas, cordeirinhos, um jumento e os três reis magos. Um espaço vazio, no centro da cena, esperava pelo menino-jesus. “Agora só falta o garoto”, ruminou sorridente o comerciante.

Meses depois, o dia tão aguardado chegou. Agemiro Caldas, após um telefonema, bateu a porta do apartamento das irmãs e encontrou nelas resquícios de que ali houvera uma discussão. Ernestina fungando, Raimunda com cara de poucos amigos. Deduziu que o clima entre as irmãs pesara em virtude da venda do menino-jesus.

— Bem... – disse sentando sem esperar convite – vamos ao que interessa. Dou 80 reais pela peça.

— De jeito nenhum! – rosnou Raimunda. Ernestina apenas soluçava.

— Os tempos estão difíceis, tenho tido poucas vendas – desculpou-se.

— Trezentos reais ou Jesus não sai desta casa!

— Trezentos?!

— Só o menino. Sem a manjedoura.

— Caramba!

Negociaram durante meia hora e fecharam em 200 reais, manjedoura inclusa. A necessidade em pagar a conta de luz derrotara Raimunda. O antiquário deixou o apartamento com o pequeno Jesus metido dentro de um saco de supermercado, alegre como um porco na lama. No quitinete das irmãs, ficou um surdo ressentimento de Ernestina em relação a Raimunda.

Depois deste episódio, Ernestina adoeceu. Começou com uma tosse seca que não a largava. Em seguida, perdeu peso e disposição para o trabalho. Acabou na cama, voz fraca, mãos trêmulas. Raimunda gastou os 200 reais do menino-jesus e mais um pouco com remédios e médicos, mas Ernestina não melhorava. Entrevada na cama, um fiapo de voz na garganta, Ernestina se penitenciava à irmã:

— Estou sofrendo porque vendi Jesus. Sou uma Judas.

Vendo que a irmã só piorava e se convencendo de que a venda do menino-jesus fora realmente a causadora daquela doença, Raimunda telefonou para o antiquário tentando reaver a peça. Agemiro Caldas, sabedor do estado de saúde de Ernestina e desejoso em tirar vantagem da situação, jogou duro:

— Lamento, dona Raimunda. Estou cobrando 600 reais.

— Pelo Presépio? – espantou-se.

— Pelo menino.

Não adiantaram as súplicas de Raimunda nem a alegada doença de Ernestina. Agemiro Caldas argumentou que não conseguira vender o presépio, que o comprador roera a corda na hora de fechar negócio e que ele tinha que reaver de uma forma ou de outra o dinheiro empatado naquelas peças e que aquele era o seu negócio: comprar barato e vender caro. Até frases de economistas famosos ele citou para justificar sua usura. Raimunda desligou o telefone sem se despedir do ganancioso. Olhou para a irmã, moribunda e sendo consumida pela paixão por um ídolo de biscuit e, entrementes, tomou sua decisão.

O pequeno antiquário localizado na Rua Barata Ribeiro, esquina com a Paula Freitas, já estava fechando as portas quando dois pivetes invadiram o estabelecimento. Agemiro Caldas, que por avareza não possuía empregados, estava sozinho. Apesar de não reagir, levou uma estocada na perna esquerda. Aos policiais um trêmulo comerciante, perna enfaixada em gaze avermelhada pelo sangue, relatou que os pequenos assaltantes haviam roubado apenas peças miúdas, mas algumas de alto valor no mercado, entre elas, peças de aparelhos da Companhia das Índias e figuras de um presépio de biscuit.

Na Praça do Lido, ás onze horas do noite, sob um calor incomum para um outono, deu-se o insólito encontro.

— Trouxeram?

— Tá aqui, dona – disse um dos meninos, abrindo o saco de estopa onde estava o produto do assalto. 

Raimunda procurou afoitamente pelo Jesus de Biscuit. Um sorriso iluminou seu rosto quando achou o que procurava. Lá estava ele, liliputiano, olhar cândido e barroco, branquinho feito cera, cabelos loiros pintados em tinta dourada. Apertou a imagem no peito e perguntou.

— Deram a facada que eu mandei?

— Na perna, como a senhora mandou. O coroa ficou bolado – falou, às risadas, o menor dos dois 

— Podem ficar com o resto das peças e tá aqui os 50 reais combinados. Agora se mandem. Eu nunca vi vocês na minha vida, entenderam?

— Deixa com a gente, dona.

Mal chegou ao conjugado, Raimunda foi ao encontro da irmã. Ernestina jazia na cama. Tinha feições alvas como um zumbi de filme B. Um hálito de morte empestava o local . A irmã entregou a ela o menino-jesus. Ela segurou com força a imagem em uma das mãos. Seus olhos se encheram de lágrimas. Encarou a figura tomada pela emoção. Ofegante, tirou do peito suas últimas forças e falou.

— Agora eu posso ir em paz.

O enterro foi concorrido. Não se sabia que Ernestina conhecia tanta gente. Capela lotada, parecia que todos os velhinhos de Copacabana vieram se despedir da anciã. Havia muitas velas, pouco choro e uma coroa de flores. Entre os presentes, Agemiro Caldas, mancando em virtude da facada, contemplou o corpo de Ernestina no caixão. Raimunda suspirou aliviada depois que o antiquário se afastou sem perceber que a defunta segurava, fechada em uma das mãos, o menino-jesus de biscuit.


1º lugar no XXXIII Concurso Literário Felippe D'Oliveira - 2010 

2 de dezembro de 2010

A Professora de Caligrafia


As letras saiam desenhadas em nanquim, faceiras, estilisticamente formosas, espalhadas com elegância pelo envelope. Cada convite de casamento seria endereçado à mão graças ao artesanal trabalho de Gertrudes. “Caligrafia é a arte não da boa escrita, mas da bela escrita!” - costumava exclamar em relação ao seu ofício enquanto manejava com perícia o bico de pena.


Finalizou mais um envelope da encomenda de trezentos. Um sorriso de indisfarçável orgulho com a própria obra escapou dos lábios. Quando não estava ocupada em dar forma aos anúncios das bodas de gente em sua maioria desconhecida, Gertrudes ministrava aulas de caligrafia, tentando tornar legíveis os garranchos produzidos por jovens imberbes, donos de uma escrita estragada pelas intermináveis horas em frente à tela de um computador. Ensinado, a professora lamentava a quase nula preocupação da juventude em escrever direito. Era do tempo da “letra de moça”, uma qualidade bem vista na sociedade.

“Sou uma peça de museu...” - pensou enquanto finalizava mais um envelope. Fechou o rosto. “Preocupo-me com coisas sem a menor importância hoje em dia”. Já não era mais um pensamento e sim um murmúrio a serpentear pelos cômodos do pequeno apartamento em um conjunto residencial financiado pelo BNH e comprado à custa de inúmeras noites em claro, desenhando letras nas mais diversas encomendas. E não eram só convites. Cardápios, certificados, diplomas, logomarcas e monogramas. O computador quase extinguira sua profissão. Tudo já saia pronto daquele cérebro eletrônico. Gertrudes nutria asco por computadores.
A campainha soou, trazendo-a de volta à realidade. Sobressaltou-se numa ânsia freada. Gertrudes era uma mulher contida, não convinha extrapolar sentimentos, ainda mais na sua idade. Atrás da porta certamente estaria o Teixeira. Familiarizara-se com os três toques breves da campainha, inconfundíveis, sua “impressão digital” pré-anunciada. Estranhou que ele não houvesse ligado antes, sempre telefonava. “Quisera lhe fazer uma surpresa? Teria vindo terminar o relacionamento?”. Suspirou.

Gertrudes abriu a porta e sorriu de modo incerto para o amante. Ele beijou-a na testa como fazia há cinco anos. Entrementes, colocou a maleta na mesinha de centro. A mesma maleta de cinco anos atrás, depositada na mesma mesinha, mesmo beijo na testa, tudo sempre igual. Teixeira sentou-se no sofá. “Agora ele vai bufar, dizer que está ficando velho e pedir um copo d’água.” - pensou a professora munida de desconsolo no olhar.

— Filha, pegue um copo d’água para mim. Estou ficando velho para suportar este calor – disse o amante entre bufos.

Ela voltou da cozinha com o aguardado copo de água nas mãos, ofertando-o ao amante que o sorveu em um único gole, estalando os dentes em resposta prazerosa. Gertrudes odiava aquele comportamento. Às vezes se perguntava por qual motivo ainda estava atada a um homem sem modos e, pior das heresias, casado. Inventou uma desculpa qualquer e foi ao quarto onde, sentada em frente à penteadeira, desfez o coque. Alguns fios de cabelos brancos teimavam em desfilar nas pontas das raízes. Andava desleixada ultimamente. Por quanto tempo Teixeira ainda a desejaria? Dois, três anos antes que o seu corpo já sem atrativos murchasse de vez?  Tentou maquiar-se da melhor maneira possível, no intuito de se tornar atraente para o amante em visita não programada.

Teixeira penetrou no aposento sem pedir licença. Através do espelho da penteadeira, Gertrudes observou a audácia daquele homem, senhor de um castelo que não lhe pertencia, crente em possuir prerrogativas de mando em razão de aplacar, vez por outra, os desejos de uma anacrônica professora de caligrafia passada dos sessenta. Ele a abraçou pelas costas. Um cheiro de cigarro e gel de cabelo agrediu-lhe as narinas, mas o contato do amante em seu corpo, a troca de calores, o desejo em ter-se nos seus braços peludos para um outono de amores que já se anunciava fez Gertrudes ceder. Deixou-se levar para a cama.

Após terem apagado a mútua chama dos prazeres, Teixeira disse estar com vontade de comer bolo de laranja. Tal pretensão era novidade para Gertrudes. Em geral, ele virava de lado e, no aconchego dos lençóis que ela zelava em manter alvos para recebê-lo, desmaiava em sono profundo feito guerreiro repousando depois de feroz batalha.

— Sabe fazer? - Perguntou Teixeira, mãos acariciando as costas nuas da professora cujas sardas brotavam, dia após dia, marcando a pele, anunciado o seu envelhecer.

Em resposta, ela levantou da cama e vestiu um roupão. Leve arfar indignado emanando das narinas. “Teixeira quer bolo de laranja. Que pedisse a maldita esposa!” - ruminou enquanto lavava as mãos contaminadas pelos fluídos do ato consumado que ainda os unia.

Na cozinha, Gertrudes catou os ingredientes. Faltava a essência de laranja. Descobriu uma de baunilha, com prazo de validade próximo do vencimento. “Serve.” - concluiu. Gastou poucos minutos descascando as laranjas e outros tantos batendo a mistura no liquidificador, preocupada com os convites que dormitavam à sua espera na escrivaninha. Da sala, os rosnados de Teixeira e o cheiro do tabaco delatavam a quase nula presença do amante. Ouvia-se ainda o burburinho de vozes que o televisor regurgitava. Ela suspirou e procurou dedicar-se ao preparo do bolo. À medida que a massa ganhava forma, Gertrudes foi tomada por um sentimento de entusiasmo por sua criação culinária. Até que não era de todo ruim poder cozinhar para o seu homem. Ali mesmo, nas redondezas, havia várias mulheres à sua semelhança, mas carentes até mesmo de um Teixeira cheirando a sarro de cigarro e gomalina. Ao menos nisso era uma sortuda: tinha alguém, ainda que pela metade. Com tais pensamentos girando na mente, o primeiro sorriso honesto germinou dos lábios da professora de caligrafia desde que o amante tocara a campainha naquela tarde. Deixou de lado as inquietações acerca do trabalho acumulado na escrivaninha.

Em três quartos de hora o bolo estava pronto. Substituídos pela fragrância de laranja que a iguaria emanava, já não eram os cheiros de cigarro e gel que impregnavam o apartamento. Gertrudes se permitiu até uma centelha de felicidade enquanto contemplava o Teixeira mastigar com entusiasmo a fatia por ela servida. Comia diante de TV, prato pousado na mesinha de centro e, entre um e outro intervalo comercial, pedia novo pedaço, não se esquecendo de elogiar o talento da professora para os assados.

 E assim o fim de tarde se espreitou pela janela da sala do apartamento de Gertrudes, trazendo consigo os primeiros sinais da noite. Teixeira, alegando ter que partir, levantou-se e foi ao banheiro. Urinou ruidosamente. Ela detestava aquele barulho de urina em contato com a água do vaso sanitário. O amante gemeu, bufou mais uma vez e deixou o banheiro abotoando as calças, afivelando o cinto.
Foi então, no momento em ela ainda cogitava se o amante lavara ao menos as mãos, que a diminuta esperança de num futuro tê-lo por inteiro ganhou um fim, pois Teixeira, saciado em luxúrias e vontades gastronômicas, ordenou-lhe enquanto vestia o paletó:

— Filha, embrulha o que sobrou do bolo. Carmela adora bolo de laranja.

Nem mesmo uma bofetada magoando sua face teria causado maior humilhação à professora. Ela, mulher lutadora, que gastara a juventude rabiscando letrinhas em convites, diplomas e envelopes para conquistar um apartamento popular num subúrbio da cidade, fora relegada a quituteira da esposa do amante. Lágrimas ameaçaram rolar de seus olhos, mas Gertrudes as estancou. Ela era uma rocha. Não demonstraria fraqueza diante do responsável pelo seu desgosto. Fungou para que a voz não saísse modulada pelo choro abortado e perguntou:

— Carmela não vai desconfiar se você aparecer em casa com um bolo pela metade?
Teixeira desdenhou:

— Que nada! Eu digo que foi um resto de lanche que o pessoal do escritório comprou na padaria ao lado. Embrulha logo, ô Gertrudes, que eu já estou atrasado!

A professora espartanamente recolheu o prato de bolo e carregou-o para a cozinha. Do interior de um armário sacou um rolo de papel laminado para fazer o embrulho. Nunca o mundo lhe pareceu tão injusto. “Quituteira da esposa do amante! Quituteira da esposa do Teixeira!”. Tais palavras davam piruetas dentro do seu cérebro, envenenado seus sentimentos. Encarou o bolo, quase pela metade, sobre o papel laminado. Cuspiu em cima da cobertura cristalizada. Uma cusparada onde estava depositado todo o seu ressentimento, todo o seu rancor. Terminou o pacote e, em seguida, levou-o de volta para a sala entregando-o ao Teixeira que, já de pé e maleta na mão direita, beijou-o a testa como sempre fazia e arrastou seu corpo através do umbral da porta. Gertrudes ainda observou-o entrando no elevador que o sugaria de volta para a esposa.

Novamente só, ela sentou-se diante da encomenda de envelopes. Tomou na destra o bico de pena. Desta feita, as letras saíram trêmulas, imprestáveis, lembrando a grafia de um recém-alfabetizado. Chorou copiosamente. “Vou comprar um computador.” - decidiu entre lágrimas e narinas assoadas. Aos poucos, retomou o controle dos nervos e a grafia voltou a ser aquela elogiada pelos clientes.

Trabalhou com dedicação até às nove horas da noite quando lembrou que precisava fazer as compras da semana. Há duas quadras do apartamento existia um supermercado que fechava às dez. Rabiscou no verso de um dos envelopes alguns mantimentos, enfiou no corpo um vestido, no ombro direito sua bolsa, limpou os resquícios de lágrimas do rosto e foi enfrentar a rua.

O contato com o ar noturno pareceu limpar seu ranço de mulher mal-amada e enfurnada em casa. No caminho para o mercado chegou até a desconfiar que certos gracejos emitidos do interior de um boteco das redondezas foram a ela dirigidos. Chegando ao estabelecimento, espantou-se com a quantidade de clientes àquela hora da noite. Lembrou-se então da véspera de feriado. “Que cabeça a minha!” – lamentou o esquecimento. Percebeu que sua vida resumia-se a letras de copista, alunos desinteressados e a esperar pelo Teixeira.

Fazia suas compras pesquisando com cuidado preços, datas de validade, composição dos produtos. Gertrudes era atenta a detalhes e não se deixaria iludir pelas multicoloridas gôndolas de supermercado confundindo clientes. Na sessão de produtos para festas, avistou um pequeno vidro de essência de laranja. Seus olhos umedeceram. Colocou o produto dentro do carrinho de compras.

Empurrando o carrinho entre corredores abarrotados de gente, a professora notou meio escondido no setor de inseticidas um frasco de raticida. No rótulo, o desenho tosco de um rato com duas cruzes na altura dos olhos. Tomou em mãos o frasco e leu com atenção o rótulo. “Veneno em pó”. Pareceu refletir por instantes sobre a necessidade da compra. “Serve!” - decidiu. “Há um rato importunando meu lar. Come da minha comida e leva as sobras para sua toca. Da próxima vez, preparo uma armadilha em forma de bolo de laranja...”

Menção Honrosa no 23º Concurso Nacional de Contos Cidade de Araçatuba - 2010

15 de novembro de 2010

Não passaria daquela noite

Não passaria daquela noite. Amor reprimido adoece. Amor confessado alivia. Tomou uma ducha, barbeou-se, usou seu melhor perfume. Traje de missa. Pegou o carro e rumou para Copacabana. Avenida Atlântica. Encostou no meio-fio. Ela veio ao seu encontro. Trajes de puta. Inclinou o corpo para dentro do automóvel.
— Quer se divertir?
— Quero casar com você.
— Me conhece?
— De vista. Passo aqui todos os dias.
— Por que eu?
— Não sei. Paixão tem dessas coisas.
O sapo virou príncipe, Gata Borralheira, Cinderela. Ela largou as calçadas da vida, ele o emprego. Vivem de amor.

11 de novembro de 2010

A Dívida

O  telefone soa. Atende no terceiro toque.
— Alô?
— A Soraia está?
— Tá na Igreja.
— Que horas aquela piranha volta?
— Mais respeito, dona! Quem tá falando é o marido dela.
— Então o senhor diz pra esta vagabunda me pagar o que deve! Não
trabalho na zona, pra ganhar dinheiro fácil!
— Te deve o quê?
— Noventa reais, pelas três fantasias.
— Que fantasias? Minha esposa detesta carnaval, é
crente! Você deve tá confundido minha mulher com outra
Soraia!
— É esse número mesmo! Quer me enrolar, seu filho da
puta? Quero meus noventa contos pelas fantasias de enfermeira,
polícial e estudante! Se essa vaca não me pagar até sexta, eu vou
na porta dela e armo um escândalo!
— Vai se fudê, mulher doida!
Desligou. Pensamentos atordoados zuniam em sua
cabeça. Foi ao quarto do casal. Por minutos revirou gavetas, vasculhou o armário e cantos suspeitos. Ouviu a chave da porta principal girar. Retornou à sala. Transpirava.
— Chegou cedo, querido.
— Onde você estava?
— Na igreja, onde mais?
— Na porra da sua igreja funciona escola, hospital ou delegacia?
— Quê?
Três facadas no peito. Uma por cada vestimenta erótica.

4 de novembro de 2010

Barro

No princípio era apenas uma massa de barro, disforme, umedecida em virtude da chuva inaugural que desabara minutos antes. O hábil escultor tomou em suas mãos calejadas a amorfa liga de argila e água e, por intermédio de movimentos circulares, transformou-a em uma esfera. Observando a bolota de lama condensada, recordou-se com um sorriso emoldurando o rosto a forma dos incontáveis planetas a pontilhar o espaço e, enquanto a dividia em seis esferas menores concluiu, satisfeito, que a finitude das coisas havia sido uma bela ideia.

Iniciou sua obra construindo o modelo. Das seis pelotas de barro nasceram o tronco, duas pernas, igual número de braços e a cabeça que, unidas, já insinuavam a forma humanóide. O talento inquestionável do escultor moldou os músculos do tórax e dos membros. Em seguida, esculpiu artérias protuberantes por todo o corpo, dando aspecto atlético a figura. Trabalhava com extrema rapidez, modelando olhos, lábios, orelhas e o nariz. Preocupou-se com os acabamentos, dedos, unhas, pêlos, linhas das mãos. Gostou do resultado, achando que a escultura carregava certa semelhança com o próprio artista. “Que obra de arte é o homem!”, exclamou enquanto soprava a narina do boneco de barro, contemplando-o com o hálito da vida. “Ide, Adão! Segue o teu destino”, disse o Criador à criatura antes de largá-la, sozinha e indefesa, na vastidão daquele mundo por Ele também arquitetado.

28 de outubro de 2010

O Ser e o Nada

No interior do templo, o pastor ameaça com um inferno tingindo em cores monstruosas as ovelhas humanas que ousassem se desgarrar das virtudes cristãs. Jean-Paul Sartre, que a tudo assistia passivamente, incorpora-se na obreira mais próxima e, entre bufos e estrebuchos do seu cavalo-de-santo, sentencia.
— O inferno são os outros...

23 de outubro de 2010

México 70: A Copa que eu não vi

Será possível alguém sentir saudades daquilo que não vivenciou? Por mais estranho que pareça, eu sinto, pois sempre me lembro com nostalgia da Copa do Mundo que, com meros quatro anos de idade,  eu não vi.  Ele foi disputada  no México, 1970, quando onze homens vestiram a camisa amarela da seleção brasileira e juntos elevaram o futebol à categoria de obra de arte.

Esqueçam tudo o que ouviram falar do governo Médici, seus porões sangrentos e a utilização do futebol como massa de manobra para manter o povo alienado e em seu lugar. Ignorem milagres econômicos, Guerra do Vietnã ou o movimento hippie. Ponha um DVD da Copa de 70 em seu aparelho e foque-se apenas nas quatro linhas que demarcaram o campo de batalha do Estádio Jalisco, na cidade de Guadalajara. Naquele longínquo mês de junho, o “scratch canarinho” como era carinhosamente chamada a seleção, apresentou um espetáculo futebolístico nunca visto antes e quiçá impossível de ser reapresentado pois, a despeito do futebol haver mudando tanto em disciplina tática quanto nos aprimoramentos físico e técnico, as peças do xadrez eram outras, e de qualidade infinitamente superior ao que vemos hoje.

Para começar, havia um deus de ébano no esplendor de sua forma física, tecnicamente perfeito e amadurecido nos seus trinta anos de idade. Pelé, simplesmente o Rei, que conseguiu a façanha de ficar eternizado na Copa em que foi magistral não pelos gols assinalados, mas pelos perdidos. Veja, reveja e deslumbre-se com o seu chute do próprio campo contra a meta  adversária e o desespero do goleiro theco, ou a clássica cabeçada defendia pelo inglês Gordon Banks, jogada responsável pela fama do arqueiro da seleção inglesa por muitos anos, ou ainda a incrível, fantástica, esteticamente maravilhosa meia-lua sem tocar na bola contra um goleiro uruguaio de prosaico nome polonês. No México Pelé foi perfeito, um maestro acompanhado pelo spalla Tostão, talentoso meia do Cruzeiro que meses antes sofrera um grave descolamento de retina e, do inferno a redenção, brilhou em terras aztecas. Justamente no confronto mais difícil, contra o “English Team”, consagrado campeão do mundo quatro anos antes, Tostão deixou sua marca em uma jogada individual pelo lado esquerdo onde, após provocar um salseiro, passou a bola para Pelé que, com um simples toque para lado, deixou Jairzinho livre para decretar a magra, contudo heróica vitória por um a zero.

Como esquecer de Jairzinho, o Furação da Copa? Seis jogos, seis gols, façanha nunca antes alcançada, nosso camisa sete levou pânico as defesas adversárias com suas arrancadas mortíferas. Tivemos ainda Rivelino e sua patada atômica; Brito zagueiro raçudo, considerado o pulmão da copa; Carlos Alberto, nosso eterno capitão que perpetuou o gesto de beijar a taça Jules Rimet (que como dizia o samba-enredo “derreteram na maior cara-de-pau”); a juventude veterana de Clodoaldo, a organização tática e os lançamentos milimétricos de Gerson, o canhotinha de ouro; a classe de Piazza, a discrição de Félix e Everaldo.

Campanha sem igual, coroada com a brilhante exibição na final disputada na Cidade do México. Um 4 x 1 convincente contra a seleção italiana, tão diferente destas finais insossas que nos acostumamos a presenciar nas últimas Copas.

Parafraseio Pablo Neruda e confesso que não vivi o momento, não vi a maior seleção de futebol de todos os tempos mas, graças ao milagre tecnológico, este espetáculo está ao alcance de qualquer mortal ao custo de uma locação de um DVD. Aprecie sem moderação.

18 de outubro de 2010

A Filha da Capa

Gerusa, você viu esta pouca vergonha?
— Benza Deus! Olha como nossa filhinha ficou bonita na capa da revista!
— Bonita? Ela está peladona da Silva! Meu Deus, que vergonha! A gente cria uma filha com tanto carinho para ela acabar assim, como veio ao mundo em uma revista de tarados? Eu virei motivo de chacota lá no ponto de táxi, todos os colegas me apontaram. Apontavam para esta revista, para mim e diziam: “Olha como a filha do Adalberto é gostosa”. Tinham a safadeza no timbre da voz.
— Deixa de besteira, homem. Nossa filha agora é famosa.
— Eu imagino a fama dela. Sabia que quando ela veio com esta história de que iria morar fora pra ter “o seu espaço” era nisso que ia acabar.
— Acabar em quê?
— Nossa filha é uma perdida, Gerusa! Será que você não percebeu?
— Ninguém se perde mais, homem. Ela se achou, isto sim. Achou uma carreira...
— Nossa Senhora! Ela quando saiu daqui de casa não tinha estes peitões!
— Silicone, Adalberto.
— E quem pagou por isto?
— O padrinho dela. Um senhor que ajuda ela na carreira. Ele é o empresário.
— Nunca mais boto minha cara na rua...
— Relaxe, Adalberto. São só umas fotinhas. Hoje os tempos são outros.
— Sou do tempo em que umas costas nuas já provocava um escândalo. Não isto aqui. A gente quase consegue ver o interior da...  eu vou sair Gerusa! Vou comprar todas as revista da cidade! Não quero meu nome emporcalhado por uma safadeza destas!
— Vai comprar todas as revistas do Rio de Janeiro?
— E esta tatuagem indecente no traseiro? “Made in Brazil”. Quem iria tatuar um “Made in Brazil” nas ancas se não estivesse à venda?
— Você é muito careta, Adalberto. Estou tão orgulhosa da nossa filhinha...
— Jesus! E este “R” aqui na perseguida?
— Foi ideia minha.
— Sua? Que dizer que você sabia? Traído dentro de minha própria casa...
— Deixa eu te explicar, homem. Foi uma jogada de marketing.
— E desde quando você entende de marketing, mulher?
— Desde que vejo programa de fofocas na TV. Ela precisava depilar a... a perseguida para as fotos. Então eu sugeri que ela fizesse um “R” lá para, se perguntassem, ela dissesse que era uma homenagem ao namorado.
— E quem é este otário que esta namorando esta aprendiz de Messalina?
— Bonito este nome, Adalberto. Nossa filha podia usar como nome artístico. Não tem namorado, seu bocó. Fica o mistério de quem seria o “R”. Tem muito jogador de futebol que começa com a letra “R”.
— Não quero ouvir mais nada... Aliás, não quero também ver mais nada! Joga esta revista pecaminosa no lixo, Gerusa!
— Isto Nunca! Vou guardar de recordação. Minha filha agora é uma artista! Já vejo os próximos passos. Ela vai para o Bigue Bródi e depois... Adalberto... Adalberto, você tá bem? Meu Deus, você tá ficando roxo! Vou ligar para o seu cardiologista! Adalberto! Fala comigo, Adalberto!

3 de outubro de 2010

Sardas

O indicador doía por tanto acionar o teclado do telefone, mas sua busca ainda não findara. Necessitava de uma loira, cerca de vinte e cinco anos, pele branquinha e, importante: sardas. Sardas a salpicar o colo e as costas, feito ilhotas em um arquipélago de melanina. As sardas eram fundamentais. Outros detalhes eram secundários. Fernanda lhe revelara sua constelação de manchinhas no dia em que aparecera no escritório trajando um tomara-que-caia. Nunca soube ao certo se ficara obcecado pelo colo pigmentado de Fernanda ou se a ocasião tão somente apertara o gatilho da paixão.

Fernanda, colega de trabalho, mulher que Hélio julgava inconquistável devido a sua insignificância e nulidade como ser humano. Considerava-se um homem sem atrativos estéticos, financeiros, sujeito sem glórias, destituído de personalidade ou carisma. Um nada, um covarde. Um covarde que amava platonicamente.

Muitas garotas de programa interrompiam a ligação, creditando a Hélio taras inimagináveis, contudo, após exaustivas buscas, encontrou uma sardenta disposta a ser sua Fernanda. Chamava-se Amanda, certamente nome de guerra.

As portas do elevador abriram-se no quinto andar de um fétido prédio na Barata Ribeiro, antigo 200. Hélio deslizou pelo corredor cujas intermináveis portas lhe presentearam com a sensação de Teseu no labirinto. Diante da 512, acionou a campainha. Uma loira miúda, corpo camuflado por um roupão amarelo, atendeu. Não tinha cara ou trejeitos de prostituta, pelo menos assim concluiu Hélio que estereotipava aquelas profissionais.

Amanda convidou-lhe a entrar em uma quitinete microscópica onde mal cabiam a cama de casal e um armário de portas empenadas.  Sugeriu que Hélio ficasse “à vontade” e, enquanto zanzava pelo quarto tagarelando sem parar, deixou cair cinematograficamente o roupão, revelando um corpo alvo, cândido, quase pueril. Lá estavam as sardas tão ambicionadas por Hélio. Sardas de Fernanda. Era o suficiente.
A prostituta ajoelhou-se na cama ao lado de um Hélio que insistia em permanecer vestido. Desempenhado com maestria seu papel, ela abriu levemente as pernas, revelando o sexo rosadinho, depilado, combinado com a tonalidade dos mamilos.

—Gosta?

— Sim... Você tem um vestido tomara-que-caia?

— Quer uma fantasia, hein? Safado...

— Quero que você se fantasie de Fernanda.

Por algumas horas Hélio passeou de mãos dadas com Amanda, que se passava por Fernanda e levava na certidão o registro de Maria Cláudia. Andaram pela orla de Copacabana, tomaram sorvete num quiosque, viram o sol se pôr às costas da Ponta do Arpoador, visitaram a feira hippie. Amanda/Fernanda/Maria Cláudia estava encantadora em seu vestidinho. O homem realizou naquele fim de tarde, prelúdio de noite, o sonho de namorar seu simulacro de Fernanda, ainda que pagasse por isto.

Chegando à portaria do antigo 200, Hélio percebeu que não mais amava Fernanda, menosprezava o sexo rosáceo de Amanda e se apaixonara por Maria Cláudia.

Quebrou-se o encanto por uma mão estendida, cobrando o  acordado pelo programa. Pagou o prometido, virou as costas para a Amanda profissional do sexo sem sexo e sentiu a agulha da sussurrada voz debochando por detrás dos omoplatas.

— Tolo...

Ou..

Quebrou-se o encantamento ao acertar o serviço contratado. Hélio sacou do bolso a carteira para pagar o combinado programa de sexo sem sexo com sua imitação de Fernanda. A garota de programa, no entanto, recusou as notas que o homem lhe ofertava com um gesto de “deixa pra lá”. Já não era mais Fernanda e, após o encontro com aquele sujeito gentil e atencioso, resolvera despir-se da personagem Amanda. Inúmeras possibilidades abrilhantavam-se à sua frente.

— Aceita subir para um café? – Ela perguntou em ousadia fêmea, contudo despida de malícia profissional. Amanda desejava, Fernanda era quimera, Maria Cláudia amava.



26 de setembro de 2010

Sonho 02 - Copa, jornalismo e baião

Trabalho em uma redação de um jornal. A tarefa dos repórteres é assistir aos jogos da Copa do Mundo e fazer um resumo das partidas para o editor. Fico impressionado com um jornalista que apresenta o seu resumo no gênero blues. O editor me chama. Informa que eu serei o responsável pela cobertura da partida Dinamarca versus Paquistão. Dirijo-me para uma cabine onde passará o jogo. Penso em fazer uma cobertura utilizando um baião interpretado por Luiz Gonzaga. Desperto.

14 de setembro de 2010

O Menino e a Atiradeira

Era um bom menino, avesso às pequenas malvadezas tão comuns no universo infantil, mas queria ter uma atiradeira. Nunca pensou em matar passarinhos, judiar dos gatos, bater nos meninos menores, mas queria ter uma atiradeira, símbolo de status entre a gurizada do bairro, um rito de passagem, porta de entrada para o mundo dos garotos maiores. E ele desejava ser da turma dos maiores.

Diziam ser ele inteligente e observador, qualidades que amenizavam sua timidez, quase um bicho do mato. E sendo tímido, não se encorajara em pedir a outro menino para lhe fazer um estilingue. Inteligente e observador, estudou por semanas a construção daqueles meio-brinquedos, quase armas, a enfeitar as mãos dos moleques descalços quando invadiam o sítio fronteiriço à comunidade para caçar pardais e rolinhas.

Adquirindo segurança em seus planos, pôs mãos à obra. Cuidando de ocultar no esconderijo do seu quarto o projeto que certamente a mãe abominaria, o menino serrou a forquilha colhida de uma goiabeira até conquistar a forma do ipsílon característico do bodoque. Arrancou a casca com auxílio do seu canivete, presente do pai que há meses fora embora de casa, e o quarto inundou-se pelo cheiro da clorofila liberada pela operação. Lixou o artefato e uniu as pontas menores do vértice às tiras de câmara de pneu previamente cortadas, atando as extremidades livres a uma peça de couro retangular que alojaria a pedra a ser arremessada.

Trabalhou o menino com extrema habilidade na criação de sua atiradeira. Ele mesmo surpreendera-se com o talento manual hibernado dentro de si. Agitado pela novidade, experimentou uma, duas vezes o estilingue, esticando e soltando inúmeras vezes as alças elásticas, lançando ao longe obuses imaginários. Escondeu o brinquedo debaixo da cama e custou a ser visitado pelo sono naquela noite, fruto da ansiedade para usar de seu bodoque no dia seguinte.

Mal os galos cantaram, o menino já estava de pé. Era período de férias e ele podia assim gastar toda a manhã provando de seu novo brinquedo.

Sozinho, no campinho de futebol próximo a sua casa, treinou a pontaria em latas de leite enferrujadas, dispostas lado a lado, próximo a uns dos gols. Fazia com cuidado a mira, esticando as tiras, enquanto olhava concentrado dentro do vértice. Soltava a pedra com suavidade, sem mover o braço. Foi quando o menino viu um camaleão sair de seu esconderijo e subir em um pequeno corte do terreno atrás do gol. O bicho parecia se aquecer, ganhando vida ao banhar-se com os primeiros raios solares do dia.

Lentamente, para não afugentar o réptil, o menino abaixou-se e pegou uma pedra. Novamente de pé, apontou o estilingue em direção ao pequeno animal. O mundo pareceu estancar naquele momento, só existindo o caçador e sua presa, tal a concentração na qual o menino depositou o tiro que atingiu de modo preciso a cabeça do camaleão, arremessando-o por força do impacto para uma moita atrás do corte.

Tonificado pela adrenalina da ocasião, o menino ansioso vasculhou a moita e encontrou o camaleão agonizante. A pedrada esfacelara parte do crânio, carnes estavam expostas, um olho havia sido arrancado. A respiração do bicho se fazia ofegante, e o réptil movia apenas uma das patas traseiras.

A visão do animal às portas da morte o chocou. O remorso então lhe inundou alma, afogando a sanha assassina que minutos antes o fizera predador. De súbito, tomou asco pela atiradeira que tanto desejara e jogou-a no meio do mato. Pela primeira vez ele matara, e viu que fora ruim. Voltou para casa corroído pela culpa. Lágrimas umedeciam sua face. A mãe, assustada, perguntou o que ocorrera. Preferiu o silêncio. Trancou-se no quarto durante o resto do dia, pensamentos dominados pela imagem do camaleão atingido.
Quando o cansaço venceu e o sono o tomou, o menino foi perturbado durante toda a noite por sonhos maus, protagonizados pelo camaleão ferido.

Os galos novamente cantaram, anunciando a nova alvorada e o menino, nem bem despertara, correu para o local onde jazia o réptil. Nada encontrou. Vasculhou em torno e nem sinal do bicho. "Quem sabe ele sobreviveu"? - pensou o menino. Um rasgo de esperança assaltou seu coração e um sorriso brotou novamente em sua face cuja tristeza havia se esculpido por quase 24 horas. Aquele sorriso juvenil transformou-se em uma risada gostosa, aplacando o remorso pelo mau ato de véspera, atestando em seu íntimo que, apesar do acontecido, ele ainda era um bom menino.

O menino nunca soube que um grupo de garotos maiores, daqueles que ele admirava, havia se reunido ali para jogarem bola enquanto ele estivera trancado em casa, remoendo-se em culpa. Divertiram-se atirando o corpo do cameleão em um riacho próximo ao campinho para ver os peixes devorá-lo. Quanto à atiradeira, também encontrada, serviu de motivo para contenda entre eles. O maior dos meninos, e mais forte, vencera a batalha, e era agora dono de um estilingue de fazer inveja. Deus escreve certo por linhas tortas.

Menção Honrosa no 7º Concurso de Contos Luis Jardim - 2009

10 de setembro de 2010

8 de setembro de 2010

Receita de Pizza Margherita

  •  Pegue o telefone.
  •  Digite o número do seu restaurante predileto.
  •  Escolha o tamanho (brotinho, média, grande, familia ou extra-large).
  •  Informe o endereço para a entrega.
  •  Aguarde alguns minutos.
  •  Atenda o interfone e libere a entrada o entregador.
  •  Pague e não esqueça da gorjeta.
Bom apetite!

3 de setembro de 2010

O Centauro de Saramago

Conheceu a Nélida no salão de cabeleireiro. Fora fazer um corte a máquina e a gerente, uma felliniana de quase 100 quilos, a convocou para executar o serviço. Sentado na cadeira, observando-a através do espelho, Ignácio sentiu o célebre desconforto machista em ser atendido por um travesti. Suas mãos eram pesadas, mãos de homem, a despeito da tentativa de figura feminina que Nélida se esforçava em representar. Não fosse o leve azular da barba e a voz artificialmente colocada, por mulher passaria. Ele voltou para casa incomodado, mas reconhecendo que Nélida havia caprichado no corte.

Na segunda vez, já estavam um pouco mais íntimos e o desconforto diluíra. “Trabalha em quê?” perguntou Nélida enquanto manejava com maestria a máquina. “Professor de matemática” foi a lacônica resposta. Como estávamos na Quarta-feira de Cinzas, Ignácio ouviu atento e assombrado, o relato de Nélida para as outras cabeleireiras sobre suas aventuras no Baile Gay fantasiada de Coelhinha da Playboy. Voltou para casa curioso, imaginando Nélida dentro dos seus trajes carnavalescos.

Na terceira ida ao salão, encontrou um negro forte sentado onde já considerava o seu lugar. A felliniana chamou outra cabeleireira para dar um trato em sua cabeça semi- raspada e Ignácio, disfarçando a contrariedade, ficou bisbilhotando os movimentos de Nélida que, num frenesi entusiástico, esculpia na nuca do Apolo de Ébano a palavra “Mengo”. Voltou para casa platonicamente enciumado.

Em sua quarta visita ao salão, durante ritual do corte, Ignácio pediu Nélida em namoro. Seguiram para a casa do professor e tiveram sua primeira noite de amor.

Passaram a dividir uma quitinete em Copacabana em companhia de um gato angorá chamado Oscar que interpretava o papel de filho que nunca teriam. Viviam como marido e mulher, pois Ignácio não a desejava como homem e tão pouco Nélida prestava-se ao papel ativo. Só um detalhe atrapalhava a paz conjugal: os flácidos 11 centímetros de Nélida. Ignácio tinha verdadeira ojeriza ao falo da amada, mal conseguia encará-lo. Passaram muitas madrugadas de carinhos no escuro, com o membro de Nélida ocultado pelo negrume do quarto enquanto o travesti recebia Ignácio de bruços, escondendo a parte de sua anatomia embaraçosa ao seu amor.

Um dia, pousou nas mãos de Nélida um livro de contos de José Saramago. Não era dada a leituras, mas interessou-se pela história de um centauro caçado impiedosamente por um grupo de humanos. Narrava Saramago que a criatura mitológica sempre tivera o desejo de dormir deitado de costas, o que sua constituição, meio homem, meio eqüino, o impedia de realizar. Encurralado, o centauro queda-se por um desfiladeiro e tem seu corpo violentamente cortado ao meio por efeito de uma pedra pontiaguda. Em seus últimos momentos de vida, a porção humana do centauro caído de costas experimenta o prazer de sentir solo acariciando seu omoplatas. Emocionada, Nélida cerrou o livro e tomou uma decisão.

Foram quase dois anos de espera, mais seis meses de recuperação após a cirurgia. Dr. Euclides Pessoa, conhecido nos meios cirúrgico-científicos como “O Pitanguy das Xoxotas”, fizera um trabalho digno de figurar em qualquer galeria de arte, dada a perfeição em que construíra a vagina de Nélida. Então, tal qual o centauro de Saramago, o agora ex-travesti provou da emoção única de, omoplatas roçando os lençóis, receber um homem, seu homem, de frente pela primeira vez na vida e ambos, unidos e extasiados, gozarem os prazeres que um prosaico papai-e-mamãe só àquele casal poderia proporcionar.

31 de agosto de 2010

É Quase Tudo Verdade

Devagax, Kátia Demal Comavida, bom dia. Com quem eu falo?
— Bom dia meu nome é Lameque Hyde e...
— Em que posso ajudá-lo, senhor Hyde?
— Bem, eu ontem fiz um pedido de visita técnica para verificação da nossa conexão e...
— Qual o número com DDD do telefone onde a conexão está ligada?
— (69)1234-5678...
— Um momento, por favor...
Cinco minutos depois...
— Mais um momento por favor...
Dois minutos depois...
— Senhor Hyde, aqui não consta nenhum pedido de visita do técnico ao endereço onde a linha está ligada.
— Mas como? Eu mesmo fiz o pedido ontem e...
— Em nossos registros constam que seu último pedido de visita técnica foi em 30 de fevereiro de 2008...
— 2008? Mas eu fiz o pedido ontem e...
— O senhor vai me deixar concluir?
— Mas é você que está me interrompendo a todo momento! Eu só quero que minha conexão funcione! Está tudo parado há quase 24 horas e...
— O senhor não precisa se exaltar. O senhor não está falando com nenhum dos seus subordinados.
— Que subordinados, minha filha?
— Meu nome é Kátia, senhor.
— “Minha filha” foi uma forma de tratamento gentil, por favor.
— Senhor Hyde, assim eu serei obrigada a encerrar o atendimento já que o senhor está sendo irônico...
— Mas como irônico? Eu só quero a nossa conexão funcionando.
— Se o senhor continuar com essas ironias, terei que encerrar o atendimento.
— Mas que ironia? Pelo amor de Deus!
— Sua respiração foi uma demonstração de deboche.
— E eu vou ter que parar de respirar agora? E esta pergunta não é em tom de deboche, ok? Vamos fazer uma coisa? Vamos recomeçar o nosso diálogo do zero?
— Se o senhor me deixar concluir...
— Então conclua, por favor.
— Como eu estava dizendo antes de ser bruscamente interrompida, sua última visita técnica agendada foi no dia 30 de fevereiro de 2008. Aqui em meus registros consta que ontem o senhor pediu o conserto de sua conexão de banda larga. Nossos técnicos estão verificando a viabilidade de conserto direto. Em caso de impossibilidade aí sim será agendada uma visita.
— Kátia, posso perguntar uma coisa? Não estou sendo irônico.
— Claro que pode, senhor Hyde.
— Fui informado que o meu caso deveria ser resolvido em oito horas. Já faz mais de um dia que eu estou sem internet. Como podemos resolver este problema?
— Recomendamos que o senhor aguarde. Farei um pedido de urgência para o seu protocolo aberto. Quer anotar o número?
— Claro que sim! E não estou sendo irônico, ok?
— o número é. 39485945008772298569020985874040339475767455587783948559-3. Anotou?
— Sim, sim. Mais uma coisa: vocês tem uma Ouvidoria?
— As reclamações só podem ser feitas através do nosso site.
— E como eu vou acionar o site se eu estou sem conexão?
— O senhor está sendo irônico de novo, terei que encerrar o atendimento.
— Não! Por favor! Peço desculpas, ok? Você aceita? Sem ironias.
— O senhor não tem necessidade de me pedir desculpas, senhor Hyde. Estou aqui apenas para atendê-lo da melhor maneira possível, mas isto não lhe dá o direito de ser rude comigo.
— Ok, Ok. Só para encerrar. Porque você não vai para a puta que pariu?
— O senhor está sendo grosseiro.
— Mas pelo menos não usei de ironia, não é verdade? Tenha uma boa tarde, do fundo do coração.
Cinco minutos depois, a conexão volta a funcionar.

18 de agosto de 2010

Bodas de Outono

Consultou o relógio cogitando a hipótese de Janete haver desistido. Ele sabia que o atraso das noivas fazia parte de um ritual cumprindo a risca por dez entre dez mulheres, mas aquela demora o consumia em incertezas. Motivos para temer o abandono em pleno altar não ele não poderia deixar de tê-los, afinal, houve muita oposição da parte dos parentes da noiva em relação aquelas bodas. “Onde já se viu? Unir-se a um homem que mal conhecia?” tornou-se um bordão entre boa parte dos familiares da noiva que também definiam o casório como “um gesto de irresponsabilidade em dose dupla”. Entretanto, a futura companheira dobrara a todos se utilizando daquilo que Nestor logo percebeu ser uma das suas maiores virtudes: a teimosia. Casariam-se e ponto final. O resto “que se danasse” como Janete costumava dizer com singela naturalidade.

O noivo afrouxou levemente o incomodativo nó da gravata enquanto matutava sobre a possibilidade de Janete haver de véspera pesado os prós e os contras de uma união com aquele quase desconhecido e concluir pela desistência. Encarando de cima do altar as incontáveis cabeças humanas a congestionar o átrio da igreja, Nestor pensou no papel mais ridículo que ele representaria em sua vida medíocre caso a cerimônia não se realizasse.

Recordou-se do primeiro encontro entre dois, em uma feira-livre, há algumas semanas, quando ele ainda lutava para acostumar-se ao vácuo provocado pela ausência da sua esposa. Desde a sua partida, Nestor descobrira o quanto fora dependente da mulher e o resultado desta submissão o tornara incapaz de lidar com as mais corriqueiras tarefas domésticas. Sempre fora homem da rua, provedor de uma casa que, ausente de filhos, funcionava satisfatoriamente sob o comando da companheira. Agora, além da dolorida saudade, tinha que, resignado, adaptar-se a sua nova vida e tentar vencer e o desafio que uma banal feira-livre poderia representar.

Foi dela a iniciativa de aproximar-se e perguntar ao homem atrapalhando diante do dono da barraca de temperos se precisava de ajuda, depois de observá-lo confundir de modo patético um molho de salsa com outro de hortelã. Janete em minutos desvendou-lhe os segredos das especiarias, apresentadas a Nestor embrulhadas por cativantes sorrisos. Tímido, o homem agradeceu o que a princípio lhe pareceu certa intromissão de uma desconhecida, mas a simpatia que aquela mulher suburbanamente trajada e puxando um carrinho de feira emitia desfez a sua prelúdica má impressão. Em minutos, Nestor deixou a feira-livre com a leve sensação de estar apaixonado.

E era paixão mesmo, das boas. Desde que conhecera Janete, a ida semanal à feira tornou-se um acontecimento especial na vida de Nestor. Arrumava-se como se a um importante evento fosse, trajando roupas da melhor maneira aceitável para aquele ambiente, tomando cuidado de não destoar dos outros freqüentadores e tornar-se uma figura caricata entre as barracas de frutas e legumes. Quando avistava Janete, seu coração galopava de ansiedade. Forçava a coincidência do encontro e ia feliz em companhia de sua amada, trocando simpatias entre odores de peixes, reclamando dos preços em meio a temperos e hortaliças, falando mal do governo tendo como fundo musical o pregão dos feirantes.

Um dia, Janete o convidou para irem ao cinema. Apesar de surpreso pela audácia do convite, ele alegremente aceitou. Nestor gostava de comédias açucaradas, Janete adorava filmes de terror. E na escuridão do cinema, entre gritos histéricos da mocinha perseguida por um psicopata na tela em cinemascope, o casal trocou o primeiro beijo. Na semana seguinte, no alto de uma roda-gigante, ela o pediu em casamento. Novamente surpreendido pela ousadia feminina, Nestor aceitou sem pestanejar.

Pendurado naquele altar, imerso em verdes recordações, Nestor envergava seu terno de missa, ensopado pelo suor que o calor daquela tarde-noite de verão produzia. Associava-se ao desconforto do clima quente o seu nervosismo em protagonizar aquele espetáculo sob risco de não se realizar.

Suas dúvidas foram sepultadas ao ouvir os primeiros acordes da marcha nupcial invadindo a nave com Janete surgindo na entrada da igreja. Uma linda noiva, conduzida com seriedade pelo seu irmão preenchendo a lacuna deixada pelo pai falecido. Para Nestor, pareceu uma eternidade a distância percorrida pela futura esposa até o altar. Seu cunhado, um tanto contrariado, a entregou e, diante do sacerdote, os dois selaram sua união perante Deus e os mortais.

Festa simples. Bolo minúsculo onde não faltaram o casal de noivinhos no topo, sidra ordinária estourada e votos de felicidades. Lua-de-mel mais parcimoniosa ainda, no quarto onde de agora em diante eles iriam morar. Estavam casados. Era o que interessava. O resto “que se dane”, pensou Nestor com sorriso maroto estampado na cara, deitado na cama de casal, na companhia do seu pijama novo, comprado especialmente para a ocasião. Janete saiu do banheiro vestindo sua camisola de núpcias encobrindo o corpo magro. Sorriu para ele. Nestor estendeu o braço direito e ofereceu o ombro para a esposa aninhar-se. Passaram a noite assim, abraçados, trocando confidências e juras de amor até que o sono os assaltasse. Quem precisava de sexo aos oitenta anos? Ambos haviam experimentado destes prazeres com seus respectivos primeiros cônjuges. Para aquele casal de agora ex-viúvos bastava a mútua companhia. O resto, inclusive os idosos, testemunhas da sua noite de núpcias, que ocupavam aquela ala dos dormitórios do asilo onde eles se internaram para viver o outono de suas existências, que se danassem.

Finalista no XII Antologia de contos Alberto Renart - Fundação Cassiano Ricardo - 2006