20 de dezembro de 2012

Perambulando


Entra no vagão do metrô um passageiro dono de uma neandertálica e tão protuberante testa que parecia possuir uma marquise sobre os olhos.
- Tá olhando para quê? - ele pergunta.
- Para lugar nenhum, minha cara é 
assim mesmo, torta para o seu lado - respondo.

21 de outubro de 2012

INRI


Quando Latércio Nicolau deixou meu consultório levando nas costas aquele seu jeito de hiena tristonha, eu juro, Cristina, que minha consciência profissional quase me fez revelar a verdade por ele tão ansiosamente procurada. Mas o sentimento de compaixão que sua alma sofrida emanava, a despeito do sucesso, falou mais alto. A verdade seria por demais dolorosa, provocando feridas que talvez jamais cicatrizassem, minha cara. Latércio Nicolau veio a mim à procura de respostas e não em busca de novos tormentos.
É claro que eu sei das minhas responsabilidades profissionais enquanto terapeuta de vidas passadas, Cristina, mas, entenda: as circunstâncias do "Caso Latércio Nicolau" são sobremaneira especiais. Nem tudo o terapeuta deve dizer ao seu paciente sob pena de abalar definitivamente a sua estrutura emocional. Você, por exemplo, caso houvesse sido uma sanguinária homicida em outra encarnação, um Nero ou uma espécie de Hitler, receberia tal notícia com tranquilidade de uma monja budista?
Não, Cristina. Latércio Nicolau não foi um genocida histórico, apesar de haver deixado para sempre sua marca na humanidade. Não se trata de fazer suspense, querida, contudo, todo este episódio de certa forma também me abalou.
Latércio me procurou desejando saber o porquê da melancolia crônica que o assaltava. Afinal, o homem tem tudo que um pobre mortal desejaria na vida: fama, dinheiro, uma bela família, realização profissional e poder. Sim, Latércio Nicolau é poderoso no meio em que milita. E fico admirado por você, meu amor, ser ingênua a ponto de não perceber tal fato.
Ok, tentarei ir direto ao assunto. Após as preliminares de praxe, Latércio Nicolau deitou-se ai mesmo, no divã que agora você se encontra sentada. Parecia amedrontado, como certos doentes que temem uma cirurgia contudo anseiam por ela na esperança de se curarem. Expliquei os procedimentos ao meu paciente e iniciamos a sessão relaxando mente. Aos poucos Latércio Nicolau foi entrando no estado hipnótico e, passados alguns minutos, estava sobre o meu domínio. Quando julguei ser o momento exato de começarmos a regressão, perguntei onde ele se encontrava. "No meio de uma multidão. Vejo pessoas gritando, xingamentos, deboches", ele disse. "Como você está vestido?". perguntei. "Como um soldado romano. Sou legionário.", foi a resposta que emergiu daqueles lábios grossos tão conhecidos do público. Já tinha uma base por onde começar, uma trilha no inconsciente daquele homem por onde seguir até alcançar o problema que o afligia quando, inesperadamente ele desatou a falar. Vou ler este trecho transcrito da fita gravada para você.
"O condenado segue no meio da turba enfurecida. Sustenta, amarrado aos punhos, horizontalmente por detrás do pescoço, a trave da cruz. A base é carregada por outro homem, por ordem do Centurião. O condenado, cabelos compridos à moda nazarena, segue resignado. O semblante transmite serenidade apesar do sangue que escorre pelo rosto, fruto dos espinhos em forma de coroa ferindo a cabeça. Chegamos ao monte, chamado de Gólgota. Deitamos o condenado. Um dos soldados finca um cravo de ferro no punho direito do homem. Ele emite surdo gemido. Repete-se a operação no punho esquerdo e nos pés. Erguemos a cruz. Não foi trabalho árduo. O nazareno tem estrutura esquálida. Algumas pessoas choram em desespero. Na certa parentes do crucificado. O nazareno pede água. Encosto uma escada na base da cruz, subo e, jocosamente, ofereço vinagre. Ele cospe. Nossas gargalhadas inundam o Gólgota. Enquanto disputamos no jogo de dados as vestes do tal de Jesus, duas outras cruzes são erguidas, ladeando o nazareno. Os outros dois condenados despossuem da dignidade do homem chamado Jesus. Lamentam suas sortes, urram desesperados pelo sofrimento. Súbito, uma ideia invade meu cérebro. Pego um pedaço de madeira perdido no chão e, com ajuda do meu pequeno punhal, esculpo as palavras "Jesus de Nazaré, Rei dos Judeus". Subo a escada e fixo a placa acima da cabeça do condenado. Novas gargalhadas eclodem. Ao lado do nazareno, rio sonoramente a ponto de quase desabar da escada..."
Permita-me interromper o relato, querida Cristina. Pelo resultado da sessão já se pode notar que, Latércio Nicolau, o maior humorista brasileiro de todos os tempos, mestre do riso, é um homem triste pelas reminiscências de outra vida. E que vida! Sim, você tem razão. Já na época do Cristo, Latércio Nicolau era dono de um humor peculiar, ainda que mais negro que a asa da graúna...

7 de outubro de 2012

Revista Samizdat 34

Participo com o conto "O Centauro de Saramago"  porém, mais gratificante é estar dividindo esta edição com uma pá de gente conhecida e talentosa.

http://www.revistasamizdat.com/2012/09/samizdat-34.html

21 de fevereiro de 2012

Aventuras de um Folião Fracassado

Peço perdão pelas apressadas linhas, mas os primeiros acordes das marchinhas carnavalescas já chegam a minha sala e tenho pouco tempo para buscar o meu exílio voluntário. Sou um folião fracassado, confesso. Não consigo me imaginar no meio da Banda de Ipanema, vestido de árabe ou pirata, latinha de cerveja em uma das mãos, cantando “alalaô ôôô ôôô/mas que calor ôôô ôôô”. Tal atitude estaria fora do compasso da personalidade quase monástica deste que escreve. Já estou até providenciando os DVDs que assistirei nos quatro dias (quatro?) de retiro cinematográfico enquanto a folia come solta Brasil afora. Traumas de infância, talvez Freud ou um menos conceituado terapeuta explique.
Tenho uma certa fobia de me fantasiar desde o dia em que minha mãe me vestiu de palhaço para uma apresentação  na festa de encerramento do Jardim de Infância. Tente se imaginar com cinco anos de idade dentro de uma roupa de Clown, guizos por todos os lados, peruca improvisada com uma meia feminina e cabelinhos de lã, cara lambuzada de maquiagem pesada, um calor sufocante de começo de verão, tendo o pobre infante que dançar, dar cambalhotas e, o pior da tragicomédia, não estar com a mínima vontade de participar do evento. Imaginaram? Querem mais uns minutos para montar a cena em suas mentes?  Certamente já decifraram o porquê da minha verdadeira aversão a fantasias.
Voltando a festa momesca, meu pai costumava me levar todo sábado de carnaval a um baile infantil no clube próximo a casa onde morávamos. Com trajes civis, em meio a odaliscas, piratas, fantasmas e baianas mirins, ia eu meio sem graça, peixe fora d’água, tentar me divertir até que em um carnaval, um garoto maior desentendeu-se comigo (impossível lembrar o motivo da contenda) e me deu um empurrão mais forte do que aqueles utilizados pelos empurradores da carros alegóricos. Fui aterrissar debaixo de uma mesa, sob as pernas de sei lá quem, joelho lanhado, cotovelo roxo e a certeza de que não era talhado para os dias gordos de folia. Ao menos carrego o orgulho de contar que já briguei em um baile de carnaval, sempre procurando ocultar que se tratava de uma inocente matinê.
Por conta deste incidente, fiquei longe dos bailes até o momento em que eles começaram a ser transmitidos pelos canais de televisão, época que coincidiu com o advento da minha adolescência e a ebulição de hormônios. Nos anos oitenta pêra quase impossível para o meninos espinhentos verem um corpo nu e o carnaval era a oportunidade de ao menos apreciar as cabrochas semi-despidas e super-rebolativas (como as coisas mudaram!). Passava os quatro dias de folia em claro testemunhado as bacanais orquestradas. Anos mais tarde descobri que os organizadores de certos bailes contratavam meninas e casais mais desinibidos para se exibirem diante das câmeras, reduzindo assim a orgia a um espaço mínimo do salão, enquanto o resto da festa transcorria numa civilidade possível para a ocasião.
Então vieram as Escolas de Samba. Decorava sambas-enredo, pesquisava a fundo os enredos a serem apresentados e varava duas madrugadas assistindo aquela ópera em linha reta passar pela minha TV. Nunca estive na Marquês de Sapucaí, só a venda dos ingressos e suas filas colossais, serpenteantes, me desanimava à aventura. E desfilar então. Nem pensar! O fantasma do palhaço ainda me assombrava.
E as Escolas de Samba cansaram – quem vê uma, vê todas, já dizia o turista japonês que abandona seu lugar na arquibancada do Sambódromo após a passagem da segunda agremiação – e hoje fico longe desta loucura necessária, válvula de escape do brasileiro, que ao menos durante quatro dias pode ser um Rei, uma princesa, um destaque na avenida, dar seu sangue pela escola, manchando em vermelho o couro do surdo, sem deixar o ritmo cair. São heróis. Viva essa gente! Viva o bravo povo Brasileiro! E que todos aqueles que amam o carnaval brinque em paz estes dias gordos e que retornem sãos e salvos aos seus lares para tudo recomeçar na quarta-feira.
Alguém tem uma dica de filme imperdível para este folião fracassado?