14 de abril de 2011

Quando um coração sangra óleo diesel (experimentos surreais)

Trafegava tranquilo sobre duas gametas rosadas. Quanto infortúnio estar ali. “Pimenta nos olhos dos outros era gasolina”, pensou. “E por que não óleo diesel?”, questionou a mosca no retrovisor do assento direito da gameta esquerda.
“Sei lá! only Deus saberia tal resposta” disse Ranitraques que até o momento não se chamava Ranitraques, só recebendo tal nome  no Dédalo-conto e virtude do autor haver esquecido de batiza-lo no inicio da narrativa.
“Ranitraques é um nome idiota”, sentenciou a mosca.
O autor indignou-se ante a afirmativa “E o seu? Como te chamas?
“Você ainda não me deu um nome?”
“Que tal Musca domestica?”
“Que falta de imaginação...”
Ranitraques perdeu seu senso de direção, entretido com o colóquio entre o autor e a musca. Quando se viu perdido entre as vaidades alheias, deu de ombros: não estava indo mesmo para lugar algum. Mas, o que era aquilo ali em frente?
Dois personagens do Carlos Cruz à procura do seu criador.


6 de abril de 2011

Chico Mentirinha

Já passavam das quatro da tarde e eu ainda não havia forrado o estômago. Coisas de caminhoneiro que, levando a vida rasgando estradas do Brasil por dias a fio transportando na cabeça a preocupação em ser fiel a horários e deixar a carga sã e salva no seu devido destino, se esquece até do básico para a sua sobrevivência: alimentar-se.
A fome soou feito buzina de carreta, revirando as tripas. Ao sinal do estômago, decidi estacionar o caminhão no primeiro posto de gasolina que avistei. Era uma parada já conhecida, ponto de encontro de caminhoneiros oriundos dos quatro cantos do País. Queria matar a fome e bater um papo mas, pelo adiantado da hora me deu a certeza de que ali eu não teria nenhum colega de estrada para me fazer companhia durante o rancho. Detesto comer sozinho porém, os anos passados dentro das boleias se não me fizeram acostumar com as refeições solitárias ao menos me deram resignação e paciência para lidar com estes problemas miúdos.
Estava eu devorando com satisfação o prato feito que a cantina do posto tão bem servia quando Chico Mentirinha apareceu. Aparição, ao estilo dos fantasmas, foi a melhor expressão que me veio à cachola naquele momento para definir o surgimento do Chico. Nem notei o ronco do motor de sua carreta estacionando. Quando dei por mim, ele já estava se sentando ao meu lado, sem cerimônia, carregando aquela cara de mentiroso tão folclórica entre nós, irmãos caminhoneiros. Trajava chapéu de vaqueiro, camisa listrada, jeans justos seguros por um cinto cuja fivela gigantesca chamava atenção pelo brilho cintilante. Os pés estavam cobertos por um par de botas marrons um tanto empoeiradas. Lembrava um personagem de filme de faroeste. O próprio Chico costumava afirmar ter sido cowboy nos States e tomado parte em rodeios montando cavalos chucros. Ninguém dava crédito à história.
Chico pediu um PF. Enquanto mastigava, começou a deitar prosa. Fazia jus ao apelido que os companheiros de profissão nele haviam posto, afinal, seus casos narrados, recheados das mais absurdas cascatas, faziam sua fama. Chico era motivo de chacota por onde botasse os pés e, como eu estava solitário e afim de um bom passatempo, festejei o encontro. Seria um pouco de diversão trocar uns dedos de conversa com aquele mentiroso pouco antes de dar prosseguimento a minha viagem.
Naquele final de tarde, Chico Mentirinha estava possesso. Contou-me uma história disparatada.
— Léo, tu me imagina o que aconteceu com o seu amigo aqui! Que Deus mande um raio me partir ao meio se eu estiver mentindo.
Chico acabara de soltar dos lábios sua frase predileta: “Que Deus mande um raio me partir ao meio se eu estiver mentindo”. Preparei-me para o tamanho da lorota acendendo um cigarro.
— Lembra daquela greve de fiscais de pesagem semana passada no Rio Grande? Pois é, eu estava lá com um carregamento de sementes de girassol. Chovia Léo, parecia que Deus havia mandado um segundo dilúvio. Fiquei mais de uma semana parado naquela fila maior que a muralha lá das chinas, esperando pesarem o caminhão para liberarem a carga. Quando finalmente me autorizaram a seguir caminho, eu já tava mais atrasado que noivinha no dia do casamento. Então eu nem pensei duas vezes: sentei bota no acelerador sem dar atenção para a carga que transportava. Foram quase dois dias guiando direto, quase sem dormir. Até que uma hora, veio um desassossego com o estado da carga. Fazia mais de uma semana que eu não dava uma espiada nas condições do frete que estava carregando. Parei o caminhão no acostamento e levantei a lona para conferir. Qual foi a minha surpresa? No meio das sacas haviam brotado uma dúzia de girassóis enormes, iguais aqueles do quadro daquele cara que arrancou a orelha, Van sei lá o que! E como cheiravam os danados! Lindos, com os caules taludos, parecendo um braço de tão grossos! Passei tanto tempo parado na fila da pesagem que deu tempo das sementes germinarem!
A incredulidade em forma de ironia deve ter fincado estaca em meu rosto, pois Chico Mentirinha encarou-me com aqueles olhos de "tá duvidando?".
— Tá pensando que é mentira, não?
— Que é isso, Chico!
— Pensa que eu não sei? Todo mundo por estas estradas vive dizendo que eu sou cascateiro.
— Não penso assim – menti.
— Pois eu vou te provar
Pediu nossa conta na cantina e fez questão de pagar. Seu semblante estava acabrunhado. Segui o "cowboy" até o seu caminhão me espremendo em desculpas, dizendo que nossa amizade não poderia acabar por causa de bobagens que os outros espalhavam.
Mas Chico não me dava ouvidos. Decidido, subiu na carroceria do caminhão começando a desatar alguns nós que prendiam a lona. Descobriu então a carga e exigiu que eu também subisse e olhasse.
Confesso haver sido assaltado pelo medo do que poderia encontrar dentro da carroceria, mas tomei coragem e olhei. Não contei o número de girassóis nascidos entre aquelas sacas de semente que cobriam todo o compartimento traseiro do caminhão, mas eles lá estavam, estupendos espécimes atestando a história do Chico. Ele sorriu vitorioso.
Segui meu destino desbravando quilômetros de asfalto com a história dos girassóis em mente. Deixei meu frete no Porto de Santos e rumei para casa com a imagem do Chico me atormentando. Pensava em como a gente costuma generalizar conceitos. O cabra mente uma vez e pronto. Não se passa recibo em mais nada do que ele diz.
Finalmente o lar. Abracei a esposa, beijei minhas crianças, estava de volta. Como é bom retornar para a família. Só que é caminhoneiro compreende o quanto aqueles que amamos fazem falta na solidão das estradas.
Durante o jantar, contei tintim por tintim o caso dos girassóis para a minha esposa. Ela olhou desconfiada e, para a minha surpresa, decretou:
— Deixe de ser bobo, homem. O Chico é tão mentiroso que é bem capaz dele de véspera ter comprado uns girassóis e enfiado entre as sacas só para dar fiança a mentira que ia ele contar para o primeiro que cruzasse com ele. E o trouxa foi você. Acorda, Léo!
Sorri diante da boia fumegante servida pela esposa concluindo que nunca saberei a verdade sobre o episódio. Que Chico Mentirinha continue por este mundão animando a vida de nós caminhoneiros com suas invencionices.

Selecionado no Concurso Contos de Caminhoneiros/2008