21 de abril de 2018

A Ceia dos Rejeitados


Simone cantando a versão de “So This is Christmas”, comércio abarrotado de gado-gente consumista, caixinhas em portarias, a obrigação de participar do amigo oculto no trabalho e uma fingida atmosfera de concórdia impregnando as pessoas. Nada disso me incomodava mais do que passar a noite de Natal junto aos familiares. Conservadores, tementes à ira divina ou mesmo hipócritas, pais, irmãos, tios e sobrinhos sempre questionaram minhas escolhas, desde a iniciante caveira tatuada no braço esquerdo – mais tarde tomado inteiro por dragões, seres mitológicos e monstros de diversas estirpes – a minha opção sexual finalmente assumida há alguns anos quando fui viver com Nanda, minha companheira até hoje.
Juntas, decidimos que passaríamos o natal em casa, na companhia de poucos amigos. Nanda ainda havia questionado se minha saúde, precária nos últimos meses, não atrapalharia nossos planos de anfitriãs. “Quero estar entre àqueles que amo.”, sorri em resposta.
Deixamos o prato principal, o peru de natal, sob responsabilidade de Rogerinho, nosso cabeleireiro de longos anos e chef de cozinha amador. Ele sempre aparecia em nossas reuniões com quitutes, regalos comestíveis e outras guloseimas. Órfão de família viva que o expulsara de casa aos treze anos quando o descobriram nos braços de um vizinho, Rogerinho nos adotara como duas tias quarentonas. Bebidas e complementos à ceia foram rateados entre os outros convidados.
O primeiro a chegar foi Tarso. Veio na companhia de uma quantidade imensa de packs de refrigerantes de variados sabores – Tarso há anos frequentava os alcoólicos anônimos – tudo sustentado pelos braços cuja envergadura fizera sua fama de medalhista olímpico na seleção de vôlei como meio de rede. Ansioso como sempre fora, chegara cedo e sem deixar de reclamar da algazarra dos cachorros presos no quintal sacudindo os trilhos de Santa Teresa. Sofócles, Aristófanes e Ésquilo reagiram assustados, latindo ante a ciclópica figura carregando quatro dúzias de latinhas debaixo dos braços. Abriu o porão e venceu o lance de escadas do nosso sobrado. Após descarregar a carga na cozinha, deixou-se desabar no maior sofá da casa enquanto choramingava:
Aquela puta me largou de vez!
Tive um pouco de dó em ver um gigante chorando feito criança enquanto nos explicava que desta vez o rompimento com a esposa fora definitivo, que ele temia não ver o filho crescer e que não estava ali para sustentar capricho de mulher fresca. “Pelo andar da carruagem, acabaria leiloando minha medalha olímpica!”
Depois, vieram Sascha, Alberto e Miguel, amado trio “Dona-flor e seus dois maridos”. Ricos, bem-apessoados e adeptos do poliamor, escandalizavam o jet-set carioca com aquela união. Trouxeram vinhos maravilhosos.
A cerveja ficou por conta de Adélio, dublê de ator de filmes de estética favela e funkeiro. Com o nome artístico de MC Délio da Perereca, em homenagem à comunidade do mesmo nome, caíra em minhas graças depois de haver assistido a um desses filmes. Desejava encaixá-lo em um projeto de seriado de humor que estava escrevendo para televisão mas que andava hibernando em virtude da minha doença. Família? A dele havia sido destroçada pela violência no Rio. Sobrara um irmão traficante, perigoso e sanguinário, enjaulado em um presídio de segurança máxima. Para o bem da sociedade, passaria o nascimento do Cristo na solitária. Adélio trouxe uma loura oxigenada assemelhada às panicats que ele esquecera de mencionar o nome nas apresentações.
Nanda me alertou sobre a demora de Rogerinho. A febre, minha parceira constante dos últimos meses, se manifestou depois de algumas horas de trégua. Alegando indisposição, pedi para minha companheira encontrá-lo através de uma mensagem de texto ou pelo celular enquanto fiquei a observar o comportamento dos nossos convidados. Tarso, entre um gole e outro de Coca-cola, esculhambava a ex-esposa para Alberto que parecia atento a tudo o que o campeão relatava, visto suas caras e bocas cambiando da indignação à piedade ante cada resmungo. Sacha e Adélio conversavam animadamente, enquanto Miguel por cortesia ciceroneava a loira, que descobrimos se chamar Josiane, pelos cômodos da casa após aquiescência de Nanda que, entrementes, tentava encontrar digitalmente Rogerinho e nossa ceia.
Não sabe da maior! O viado está agora no supermercado comprando a porra do peru! – sussurrou Nanda em meu ouvido. Podia sentir o ódio em seu hálito de menta, mas como estava em tempos de paz e amor e a febre me deixava sem disposição para brigas, pedi que ela relaxasse.
Antes da meia-noite ele chega…
São quase oito horas, Lídia! O cara ainda vai ter que preparar o Peru, arroz, a farofa… A gente devia ter encomendando uma ceia pronta!
E deixar o menino perder a oportunidade de ser gentil?
A gentileza dele parece carecer de responsabilidade.
Mudei de assunto para não me aborrecer em um dia em que desejava harmonia entre os meus amigos. Se quisesse confusão, teria pedido para que Nanda me levasse à casa dos meus pais e suas ideias fundamentalistas, suas indiretas acerca da minha vida, o quase desrespeito com minha enfermidade.
Pensando em escrever uma coisa curta, talvez um conto, para ganhar ritmo.
Já tem o tema?, perguntou Nanda.
Umas ideias passeando pela cabeça, nada definitivo, respondi.
Perto das nove, Rogerinho finalmente apareceu. Tocou ruidosamente o a campainha. ouriçando novamente os rottweilers. Rogerinho detestava interfones.
O Cérbero está preso? - gritou.
Você sempre pergunta isso, meu caro. Já sabemos dos seus conhecimentos rasos de mitologia e da alusão aos três simpáticos cãozinhos de nossas anfitriãs – debochou Alberto surgindo na janela do sobrado cujo pequeno quintal abrigava os cachorros, nossa segurança em um bairro outrora aprazível.
Subiu um tanto invocado pelas provocações de Alberto, mestre nas ironias. Sascha o recebeu com um selinho e Nanda com uma série de impropérios. Miguel tomou os sacos de supermercados que ele tinha em mãos, em especial o mais pesado que abrigava a ave. No sofá, Tarso se lamentava para mim.
Dez anos de casamento com aquela ingrata!
Rogerinho, após leve discussão com Nanda, tratou de iniciar os preparativos para assar o peru. Sascha e Josiane o assessoravam. Alberto, taça de vinho em uma das mãos, duvidava dos dotes culinários do cabeleireiro.
Esse só manja de quitutes e tábuas de frios. Não deveríamos ter confiado tamanha tarefa ao nosso pobre alisador de cabelos crespos – dizia a Miguel que gargalhava em resposta.
Rogerinho não deixava por menos.
Não fode, vértice podre do triângulo!
Em meio a galhofas, burburinhos e a música ambiente, levantei-me ainda um pouco amolecida pela febre e fui à janela onde estava Nanda. Ela afagou meus cabelos e sorriu. O hálito de menta agora exalava ternura.
Está melhor?
Assenti com afeto. Ambas ficamos observando a ladeira de paralelepípedos entrecortada pelos trilhos de um bonde que raramente transitava. Havia um quase deserto de almas. Um mendigo ocupava o outro lado da calçada deitado em seu colchão maltratado pelo tempo. Saberia ele que hoje era véspera de natal?
Não faço a menor ideia, mas a gente manda uma quentinha para ele assim que o Rogerinho conseguir assar o peru.
O cabeleireiro travava naquele momento árdua batalha contra a ave que já estava há algum tempo no forno. Reclamava das instruções na embalagem, achando o tempo de assamento curto. Sascha dava mais palpites que efetivamente ajudava, Josiane preparava a farofa e o arroz enquanto os outros convidados bebiam.
Pela nossa janela passava agora Kátia. Descia de Santa Tereza rumo à Lapa levando seu rebolado dentro do vestido colado e botas de cano alto. Teria ela clientes naquela noite?
Certamente que não. Quem na véspera de natal vai procurar uma garota de programa? Não vai ganhar nem para as passas.
Que maldade, Nanda –, ralhou Adélio enquanto lhe oferecia um copo de cerveja.
Ficamos os três a conversar. Passaram dois policiais em sua ronda noturna e ao fundo ouvia-se o ruído incômodo de um caminhão de lixo. Para alguns trabalhadores e desfortunados aquela noite se descortinava como outra qualquer. Despertados pelo barulho, Sofócles, Aristófanes e Ésquilo novamente latiram. Nanda achou que era hora de soltar as feras no quintal. O bairro andava inseguro ultimamente. Desceu para cumprir a tarefa.
Finalmente, por volta das onze horas, o peru ficou pronto. Orgulhoso, Rogerinho exibia o assado em uma bandeja como fosse a cabeça de um Sansão. Batemos palmas, Adélio a comparou com um avestruz, dado o seu tamanho, eu o batizei por Fênix aludindo à minha esperada cura que representaria um renascimento, Alberto preferiu apelidar nossa janta de uma Ave do Estínfalo, perigosa e, consequentemente, intragável. Josiane e Adélio esculpiram interrogações em suas faces em sinal da suas ignorâncias acerca de mitologia grega. Rogerinho, que só conhecia o mito do Cérbero, também não entendeu a chacota. Os outros riram, com exceção de Tarso que ainda pensava na ingratidão da ex-mulher.
Tomado pelo clima festivo, Rogerinho exagerou em suas já clássicas presepadas e começou a bailar pela sala equilibrando a bandeja. Em um dos seus rodopios o pior aconteceu: um tropeço na borda de um tapete e o peru ganhou vida, voando em direção à janela. Tarso, que estava sentado próximo, ainda tentou um dos bloqueios que o deixaram famoso mas conseguiu tão somente interceptar a bandeja. Fênix foi espatifar-se no quintal e sob nossos olhares incrédulos que lotaram o quadrado da janela vimos a ave ser destroçada pelas mordidas dos rottweilers. Foi um espetáculo digno de uma arena da antiguidade. Em parcos minutos o peru desapareceu entre as dentadas de Sófocles, Aristófanes e Ésquilo que, terminada a refeição, olharam para cima num misto de agradecimento e quero mais.
Nanda, ariana típica, tentou, a exemplo dos cães, estraçalhar Rogerinho. Foi contida por Miguel e Tarso. Os outros convidados entreolhavam-se atônitos ante o acontecimento. Rogerinho chorava, implorando desculpas. A fúria de Nanda estancou e aos poucos, o ambiente foi serenando e o processo de decantação de emoções deixou apenas uma atmosfera decepcionante. “E agora?”. A pergunta coletiva ecoou por toda a sala.
Pensei alguns segundos. Não desejava que a noite natalina tão aguardada tivesse um desfecho infeliz. Eu era uma roteirista, uma especialista em tramas intrincadas e, por que não, finais felizes. Espremi toda a minha criatividade e a solução, simplória veio de imediato. Disse que iria descansar poucos minutos no quarto. Todos assentiram com suas caras de velório. Nanda quis me acompanhar, creditando minha retirada da sala aos eventos desagradáveis da noite. Tranquilizei-a com um beijo na boca e fechei a porta. Minutos depois, retornei sorrindo.
Tudo resolvido. Nada de perguntas e confiem. Ânimo, gente! Afinal, não estamos em uma festa?
Aos poucos a normalidade, ainda que desconfiada devido as minhas palavras, se reestabeleceu. Rogerinho servia bebidas, Alberto servia sarcasmo. Um grupo conversava sobre arte literatura, outro malhava o governo. Tarso olhava o vazio abrigando um copo de refrigerante na manopla direita. Sentada ao lado de Nanda, deixei minha cabeça cair em seu ombro. Os cães, saciados, pareciam dormir.
Soou o interfone. Levantei-me e fui atender. Minutos de ansiedade por parte dos convidados. Quando abri a porta e deram com a figura do entregador gargalharam, uivaram e aplaudiram meu ovo de colombo. Três pizzas superfamília de calabresa, napolitana e de palmito, a predileta de Nanda, começaram a ser divididas, não feito hóstias sagradas e sim a semelhança de um ritual pagão, com voracidade e gula. Perguntei ao entregador se ele gostaria de passar o natal conosco, prontamente aceito. Servi-lhe uma fatia enquanto Alberto lhe ofertava uma taça de um vinho californiano extraordinário.
No meio da confraternização Nanda lembrou do mendigo. “Convide ele para cear conosco, amor”, disse. Minha companheira foi buscá-lo. De princípio ele estava acanhado e um tanto sujo pelas ruas. Oferecemos um banho e um roupão e assim vestido ele integrou-se a nós. Sacha ofereceu cerveja, ele preferiu refrigerante. ‘Não bebo, senhora. Obrigado.”
Da rua ouvimos os saltos de Kátia estalando pelos paralelepípedos. Nanda a chamou para a ceia. Estava em companhia de uma mulata aparentando um metro e oitenta. Kátia perguntou se poderia levar a amiga. Nanda, coração batendo em compasso natalino, permitiu. Foram recebidas com festa e animaram ainda mais nosso natal com danças e relatos de suas aventuras pelas esquinas da Lapa. Miguel mostrou curiosidade pelos nomes verdadeiros das duas. Kátia, disse se chamar Sirlene. Já Vanessa, a mulata estonteante de olhos verdes fictícios, era Luís Cláudio na certidão de nascimento.
E foram chegando os policiais da ronda noturna, garis, outras garotas de programa, michês, garçons que deixavam o trabalho e meninos de rua que se revelaram corteses, tratando a todos de tio. A nata dos rejeitados pela sociedade jantou conosco naquela noite. O milagre da multiplicação da pizza realizou-se em nossa sala, alimentando a todos. O ambiente regado de confraternização e alegria, cerveja, vinhos e refrigerantes. Tarso mostrou-se interessado em Kátia/Sirlene e esqueceu a ex-mulher cujo nome nem eu lembrava. Rogerinho e o entregador de pizza flertavam.
À quatro horas da madrugada a festa estava no ápice mas minhas forças se esvaíram e precisei me deitar. Despedi-me de um por um dos convidados desejando feliz natal. Mal fechei a porta percebi a diminuição do som e as conversas sussurradas em respeito a meu repouso. Mas não consegui dormir. Fiquei pensando nos acontecimentos da noite. Assim, acendi o abajur, peguei meu caderno de notas e comecei a rascunhar esta história.