15 de novembro de 2010

Não passaria daquela noite

Não passaria daquela noite. Amor reprimido adoece. Amor confessado alivia. Tomou uma ducha, barbeou-se, usou seu melhor perfume. Traje de missa. Pegou o carro e rumou para Copacabana. Avenida Atlântica. Encostou no meio-fio. Ela veio ao seu encontro. Trajes de puta. Inclinou o corpo para dentro do automóvel.
— Quer se divertir?
— Quero casar com você.
— Me conhece?
— De vista. Passo aqui todos os dias.
— Por que eu?
— Não sei. Paixão tem dessas coisas.
O sapo virou príncipe, Gata Borralheira, Cinderela. Ela largou as calçadas da vida, ele o emprego. Vivem de amor.

11 de novembro de 2010

A Dívida

O  telefone soa. Atende no terceiro toque.
— Alô?
— A Soraia está?
— Tá na Igreja.
— Que horas aquela piranha volta?
— Mais respeito, dona! Quem tá falando é o marido dela.
— Então o senhor diz pra esta vagabunda me pagar o que deve! Não
trabalho na zona, pra ganhar dinheiro fácil!
— Te deve o quê?
— Noventa reais, pelas três fantasias.
— Que fantasias? Minha esposa detesta carnaval, é
crente! Você deve tá confundido minha mulher com outra
Soraia!
— É esse número mesmo! Quer me enrolar, seu filho da
puta? Quero meus noventa contos pelas fantasias de enfermeira,
polícial e estudante! Se essa vaca não me pagar até sexta, eu vou
na porta dela e armo um escândalo!
— Vai se fudê, mulher doida!
Desligou. Pensamentos atordoados zuniam em sua
cabeça. Foi ao quarto do casal. Por minutos revirou gavetas, vasculhou o armário e cantos suspeitos. Ouviu a chave da porta principal girar. Retornou à sala. Transpirava.
— Chegou cedo, querido.
— Onde você estava?
— Na igreja, onde mais?
— Na porra da sua igreja funciona escola, hospital ou delegacia?
— Quê?
Três facadas no peito. Uma por cada vestimenta erótica.

4 de novembro de 2010

Barro

No princípio era apenas uma massa de barro, disforme, umedecida em virtude da chuva inaugural que desabara minutos antes. O hábil escultor tomou em suas mãos calejadas a amorfa liga de argila e água e, por intermédio de movimentos circulares, transformou-a em uma esfera. Observando a bolota de lama condensada, recordou-se com um sorriso emoldurando o rosto a forma dos incontáveis planetas a pontilhar o espaço e, enquanto a dividia em seis esferas menores concluiu, satisfeito, que a finitude das coisas havia sido uma bela ideia.

Iniciou sua obra construindo o modelo. Das seis pelotas de barro nasceram o tronco, duas pernas, igual número de braços e a cabeça que, unidas, já insinuavam a forma humanóide. O talento inquestionável do escultor moldou os músculos do tórax e dos membros. Em seguida, esculpiu artérias protuberantes por todo o corpo, dando aspecto atlético a figura. Trabalhava com extrema rapidez, modelando olhos, lábios, orelhas e o nariz. Preocupou-se com os acabamentos, dedos, unhas, pêlos, linhas das mãos. Gostou do resultado, achando que a escultura carregava certa semelhança com o próprio artista. “Que obra de arte é o homem!”, exclamou enquanto soprava a narina do boneco de barro, contemplando-o com o hálito da vida. “Ide, Adão! Segue o teu destino”, disse o Criador à criatura antes de largá-la, sozinha e indefesa, na vastidão daquele mundo por Ele também arquitetado.