20 de dezembro de 2015

Mondrique

Mondrique

Durante a execução do seu número, Mondrique mal se permitia disfarçar a tensão. Ela estava lá, a congestionar-lhe as feições, perturbando sua performance no picadeiro. Havia errado um truque, mas o respeitável público daquela cidade interiorana perdida no mapa brasileiro parecia alheio à apresentação e não notou seu equívoco quando um coelho saiu sorrateiramente da manga de seu smoking no lugar de um baralho com 52 cartas. Coelhos saem da cartola, resmungou o mágico enquanto mirava sua partner, Reginalda, também tensa em virtude dos acontecimentos que em poucas horas iriam se concretizar. Enfiada em um sumário maiô coberto de paetês, Reginalda fazia caras e bocas mal ensaiadas para o pequeno público que fora prestigiar o Gran Circo Continental na falta de melhor entretenimento naquela cloaca de mundo onde viviam.
Não era bem verdade que os espectadores da última noite em que o Gran Circo Continental se apresentaria estavam totalmente displicentes em relação ao espetáculo. Havia alguém, o delegado da cidade, que aplaudia freneticamente cada trejeito de Reginalda. Também pudera. Ela aceitara o convite para permanecer na cidade, tornando-se amante clandestina do agente da lei com casa, comida e um par de trepadas semanais tão logo o circo baixasse suas lonas. Mondrique estava desgostoso. Jurara amor eterno à Reginalda e não esperava tão sórdida traição. Como descobrira? Mais do que mágico, Mondrique era dotado de poderes sobrenaturais e a arte da adivinhação era somente mais um deles.
Poderia fulminar o casal adúltero por intermédio do seu olhar de seca pimenteira. Já havia experimentado em certa ocasião, não com pimenteiras e sim com um vira-lata que ousara avançar em sua canela numa madrugada perdida no tempo quando fora esticar as mesmas depois de uma apresentação em outra cidade. O pobre cãozinho trincou os dentes, estrebuchou e literalmente caiu duro em questão de segundos. O próprio Mondrique espantou-se com tamanho poder e com o tempo aprendeu a controlá-lo e, sobretudo, não o utilizar em contendas ou descontentamentos. E era esse agora o caso.
Maldita clarividência, pensou enquanto agradecia ao público com uma mesura. Despossuído dela sofreria tão somente o momento da perda e não a certeza ansiosa da véspera. De pouca serventia era aquele talento, visto que raras vezes algo de bom para a sua vida ele previra.
Um super homem que ocultava seus super poderes para melhor viver entre os pobres mortais, assim se sentia Mondrique. O povo preferiria as mágicas inocentes. Caso levantasse um cadáver, que pandemônio não causaria! Seria considerado um deus, ou um diabo. Em qualquer dos casos, certamente desgostos e aborrecimentos teria ele aos borbotões.
O pequeno trailer que divida com Reginalda possuía dupla função de dormitório do casal e camarim. Noites de amores ardentes e preparativos para o espetáculo onde Juvêncio se transformava no grande Mondrique, maior mágico do planeta, nas palavras do mestre de cerimônia do circo, aquele apertado trailer havia testemunhado. O nome de fantasia fora chupado e adulterado de um mágico das histórias em quadrinhos ianques. De início sabia que Reginalda por ele nutria um amor sincero, afinal, Mondrique tudo descobria de sentimentos humanos. Um aperto de mão, um abraço, um simples toque em um fio de cabelo ou a intimidade do coito, o mínimo contato corporal e lá estava o mágico roubando os segredos alheios. Com o tempo, aquela faculdade de Mondrique revelou  o tédio da amada, indiferença, desprezo, até culminar pelo interesse de Reginalda pelo delegado e seu projeto de lhe abandonar. Ao menos algum plano para eliminá-lo ou algo parecido Mondrique não captara nos cada vez mais escassos contatos corporais com a futura ex-mulher. Revolta e conformismo acabaram por se digladiar dentro de suas ideias. Que ela fosse, ou melhor: ficasse na cidade.
Quando ele entrou no trailer, Reginalda já lá se encontrava. Retirava a maquiagem. Ela se assustou como uma criança pega em travessura.
– Fez as malas? – ele perguntou.
– Que malas? A gente leva tudo dentro do vagão mesmo – gaguejou a partner sem conseguir disfarçar a surpresa.
– As malas que o puto do delegado passará aqui para pegá-las ou você iria fugir escondida feito um rato que se esgueira pelos esgotos?
Quando Reginalda se foi, Mondrique decidiu que mulher alguma valeria o sacrifício de seu amor. Nunca mais se apegaria a rabos de saia, rachas ou jogos de seduções femininas. Para ele, bastavam agora as quengas das casas de tolerâncias instaladas nos arredores das cidades por onde o Gran Circo Continental aportasse. Haveria até dividendos: a cada toque recebido ou dado em uma mulher da vida já saberia de antemão o que ela pensava a seu respeito. Muitas vezes, interrompia o encontro ou perceber que por ele algumas damas de bordéis sentiam asco enquanto fingidamente gemiam espremidas entre o corpanzil do mágico e os lençóis fedendo a amores clandestinos. Pagava a cafetina e voltava para o seu trailer sem mais explicações. Nessas ocasiões, tornava a resmungar: maldita clarividência.
Certa ocasião, quando o circo estava armado em um lugarejo perdido no sertão nordestino, algo inusitado ocorreu. Mondrique, após o espetáculo onde se utilizou de maneira sutil dos seus reais dotes de levitação, com certo cuidado para que parecesse um mero truque de ilusionismo, sentiu necessidade de uma mulher para se aconchegar. Como sempre, perguntou de forma discreta a algum homem das cercanias onde estava instalada a zona da cidade. Informações tomadas, rumou para o casarão na outra margem do rio. Puteiro das antigas, com ares de cabaré, shows de moças quase peladas rebolando no palco e uísque de má qualidade servido. Nem bem havia se alojado atrás de uma mesa solitária, uma ruiva de vestido curto exibindo coxões alvos e colo sardento explodindo pelo decote acentuado, sentou sem cerimônia ao seu lado.
– Bebe o quê, meu lindo?
– Para mim, uma água tônica. A moça pode pedir o que desejar.
Água tônica naquele tipo de estabelecimento não havia. Contentou-se com um refrigerante. A ruivona, quase um metro e oitenta de carnes bem distribuídas pela silhueta, lhe pareceu simpática, além de sexualmente atraente. Gastaram alguns minutos em conversa pra lá de fiada e Mondrique pagou as bebidas enquanto combinava os honorários por uma hora de serviços na horizontalidade de uma cama. Subiram uma escada em caracol para o segundo andar do prostíbulo onde ficavam os quartos. A ruiva ia à frente, com o traseiro quase esbarrando nas ventas do mágico. No corredor, ela pegou na mão sinistra de Mondrique para guiá-lo até um dos cômodos. Estranheza correu por todo o seu corpo. Não divisou nada após o contato. Que intenções teria aquela mulher? Sua vidência findara? Haveria alguma interferência, um ruído na comunicação parapsicológica? Maldita clarividência que o abandonara, pensou.
Dentro do quarto semelhante a uma cela de convento pela pobreza dos móveis e cabine de navio pela economia de espaço, quis saber a graça da ruiva:
– Gigi.
Toda puta provinciana se chamava Gigi.
– De guerra? – perguntou Mondrique tocando-a de leve na ânsia de descortinar sua verdadeira identidade. Nenhum sinal telepático.
– Claro, lindo. O da pia batismal eu digo só para aquele que me tirar da vida – zombou enquanto mostrava os dentes alvos como o corpo que revelava à medida que o vestido escorria até o chão.
Diante da monumental voluptuosidade que se apresentava à sua frente, Mondrique esqueceu por um tempo as inseguranças dos poderes extra-sensoriais perdidos e se perdeu nos labirintos de Gigi, que dele fez gato, sapato, barba, cabelo e bigode, deixando-o extasiado.
Enquanto o Gran Circo Continental permanecia naquele rincão no fim do mundo, Mondrique quase que diariamente visitava Gigi nos seus aposentos de luxúria. Ela se mostrou receptiva ao mágico, tratando-o com carinho, ternura e muito sexo. Após cada ato consumado, dia após dia, o mágico tentava, através de abraços, beijos e chamegos, conseguir extrair da meretriz algo que revelasse seus verdadeiros sentimentos. O afeto que Gigi demonstrava antes e depois dos entrelaçamentos mundanos eram reais? Maldita dúvida que me assola, resmungava Mondrique.
E ele foi se apaixonando pela marafona do interior, quebrando a promessa que fizera quando da deserção de Reginalda. Com medo de que o dono do circo resolvesse encurtar a temporada na cidade em razão das baixas bilheterias, decidiu usar seus poderes ocultos e incrementar cada vez mais seu número, visando atrair público e manter o picadeiro montado por aquelas bandas.
Foi um tempo em que o Gran Circo Continental vivenciou apresentações memoráveis, desde a já manjada levitação de objetos, alguns dias depois trocados por voluntários que se aventuravam ao sobrevoo sobre a plateia quase esbarrando no alto da lona circense, passando por um extraordinário espetáculo de luzes e fogos que jorravam das mãos energizadas de Mondrique, este tomando as devidas precauções para não ferir um membro da plateia mais entusiasmado.  O ponto alto foi quando ele deu de fazer adivinhações. Desta forma, descobriu que seus poderes telepáticos só com Gigi não funcionavam. Maldito mistério, lamentou.
O circo entupia de gente na esperança de conhecer um futuro melhor após o mágico tocar-lhe as mãos. Contudo, Mondrique assevera que só o passado revelava. O futuro a Deus pertence, repetia prevenido em não se meter em complicações acerca das fofocas locais. Atendia no máximo a meia dúzia de curiosos, revelando nomes de família, doenças de infância, fatos marcantes em suas existências. Do passado, escondia com habilidade qualquer fato embaraçoso daqueles que se dispunham a tomar parte no número.
A fama do mágico correu toda a região e claro que a outra margem do rio não poderia escapar das notícias que um prestidigitador estava fazendo proezas no cirquinho mambembe que por ali aportara. Gigi, que já sabia onde e no que Mondrique labutava, foi em seu dia de folga, acompanhada por um cortejo de quengas, prestigiar o sucesso de seu cliente preferencial. Sentou-se na primeira fila ombreada por suas colegas de profissão, para o escândalo da sociedade local. Mondrique ficou encantado com a visita e no final da apresentação, materializou um ramalhete de flores que ofertou à amada. Ele tinha planos.
– Quer casar comigo, Gigi?
– Tenho que ir com o circo, lindo?
– Na cidade eu fico, mas terás que largar a saliência.
– Aceito então.
Alugaram uma casinha do outro lado da margem do rio. Mondrique dava consultas, passado, presente e futuro. Até pequenas curas fazia. Tudo a preços módicos, mas o suficiente para levarem uma vida confortável. Com o tempo, caravanas começaram a chegar à porta da casa, no intuito de consultarem o vidente agora famoso. Hotéis, restaurantes e lojas de lembrancinhas alavancaram o comércio da região. Até o puteiro onde Gigi trabalhara se beneficiou com o fluxo de turistas. Mondrique tinha alguns aborrecimentos vez por outra. Em inúmeras ocasiões foi preso pela prática de curandeirismo e solto após alguns dias, voltava ao seu ofício de médium. Gigi na verdade se chamava Laurinda. Isso Mondrique, agora rebatizado de Irmão Juvêncio, não adivinhara. Ela mesma, cumprindo promessa, revelara o nome ao marido. O que nunca Juvêncio descobriu foi que Laurinda também possuía os dotes da clarividência. De alguma maneira o contato corporal entre aqueles seres embaralhou o dom do esposo enquanto o dela se manteve intacto. Abominava utilizá-lo. Durante toda infância, de bruxa era chamada pela família e vizinhança. Assim, quando Juvêncio a tocou na noite em que se conheceram, ela já sabia o final dessa história.


19 de novembro de 2015

Pagliaccio

Trata-se de uma deslavada inverdade que eu deteste palhaços. Um equívoco, desconhecimento dos fatos. Gosto inclusive de assistir suas estripulias em programas de televisão e é constante pegar-me em estridentes gargalhadas ao interagir com eles da plateia de um espetáculo circense. Nada contra estes respeitáveis artistas, dignos, a despeito da cara pintada e roupas coloridas. A imprensa exagera a esse respeito. Apenas não quero fazer parte do seu mundo, ser um deles, tenho lá os meus motivos.
Meu incômodo em relação a palhaços iniciou-se no dia em que a Tia Sônia, casmurra professora da turma do jardim de infância, resolveu dividir entre seus pequenos alunos os papéis que cada um desempenharia na festa de encerramento do ano letivo. Eu queira por demais representar um sapo no número musical ambientado em uma floresta, porém, Tia Sônia, mais sorumbática do que nunca, decidiu colocar-me no grupo dos Palhacinhos Dengosos. Reclamei com uma surpreendente polidez para os meus parcos cinco anos e como não consegui convencê-la, terminei por resignar-me, achando que ao explicar o caso à minha mãe tudo ficaria resolvido.
Mamãe já se acostumara com o meu comportamento maduro para a idade. Ela acreditava ser eu um “espírito antigo” desde que fora consultar um pai-de-santo para livrar-me de uma bronquite que nenhum médico da Terra conseguia curar. O pai-de-santo, incorporado por uma entidade que afirmava se chamar “Doutor Marcolini”, médico italiano que habitara Veneza no ápice da Renascença, ao dar de cara comigo abriu um largo sorriso e exclamou.
—  Oh! Você por aqui? Que grande alegria! – e virando para minha mãe disse: — Este já sabe de tudo. Deixe-o tomar as rédeas de sua própria vida. É um espírito muito antigo… Muito antigo…
E receitou um preparado à base de xarope de ameixa e uma série de ervas que em dois tempos deu por encerrada a persistente bronquite que me acompanhava.
Sendo espírito antigo, mamãe deduziu que eu trazia de outras vidas aquele comportamento adulto que eventualmente desabrochava, como no episódio do palhaço. Seria comum na minha idade espernear, armar um berreiro, mas qual? De dentro de minha roupinha vermelha do jardim de infância, tão somente dizia que não queria fazer “papel de palhaço na frente de todo mundo”. Preocupada, a mãe foi ter com a professora.
— Não posso mudar o Marquinhos de grupo agora, Dona Veridiana – protestou a casmurra – Como as outras crianças reagirão? Além do mais, os coleguinhas dele estão adorando a ideia de se fantasiarem de palhaços. Não entendo porque só o seu filho está com esta história. Vamos fazer o seguinte: o Marquinhos ensaia e a senhora diz que ele não vai se apresentar. No dia, lá no teatro, vestido de Palhacinho Dengoso, eu tenho certeza de que ele vai adorar e se divertir como todos os outros. E a senhora vai ficar orgulhosa com os aplausos.
Tia Sônia apelou ainda para o conceito de disciplina e que seria bom para o menino aprender desde cedo que na vida nem sempre podemos fazer tudo o que desejamos.
Mamãe achava que deveria seguir as orientações do “Doutor Marcolini” e deixar-me “tomar as rédeas da própria vida”, mas preferiu não se confrontar com Tia Sônia, lembrando-se que meses atrás eu já havia entrado em contenda com minha primeira mestra ao teimar em não tocar “coquinhos” na banda mirim da escola. Sentia-me ridículo batendo duas meias-esferas de casca de coco seco e sempre que o ensaio se iniciava, pegava na caixa de instrumentos um triângulo de aço. Diante da minha firmeza em não ser um mero tocador de coco, Tia Sônia na oportunidade se deixou dominar pela insubordinação de um moleque de cinco anos, mas desta vez seria diferente. Uma maçã podre dentro de uma caixa poderia contaminar todos os frutos e para tia Sônia não perder o leme de sua turma, eu seria um palhaço.
Os primeiros ensaios revelaram que, mesmo sentindo-me desconfortável, eu era o melhor entre os oito Palhacinhos Dengosos selecionados. Ao som da música tema…
O Palhacinho Dengoso,
Dá três pulinhos assim!
O Palhacinho Dengoso,
Vira os olhinhos assim!
…lá estava eu, virando os meus olhinhos infantis com aplicação espartana, dando três pulinhos e cambalhotas com maestria de um palhaço profissional. Tia Sônia, encantada, decidiu que eu me apresentaria na primeira fila, no centro do palco. Desconfiado, afirmei só estar ensaiando e não iria participar do espetáculo. A professora, livrando-se momentaneamente da sua natureza carrancuda, afagou meus cabelos ruivos e disse:
— Como quiser, meu anjo. Você não vai participar…
A traição rondava a minha própria casa, invadia os corredores, transitava pelos cômodos até chegar ao quarto da minha irmã Natália, dez anos mais velha do que eu e cúmplice do plano de mamãe e Tia Sônia em fazerem de mim um palhaço. Foi de Natália a ideia de comprar uns dois metros de uma imitação de cetim branco com motivos em forma de losangos vermelhos e verdes. Pano não muito caro, contudo de efeito arrebatador. “Maninho vai brilhar no meio daqueles remelentos” – declarava triunfante.
Certo dia, ao chegar do colégio, deparei-me com mamãe e Natália num frenético trabalho de preparo da minha vestimenta de palhaço. Em meio aos seus gritos de entusiasmo diante da obra-prima que julgavam confeccionar, pude, pela primeira vez, ver aquela roupa que iria perseguir-me em pesadelos por anos. Era um simples macacão, parecido com os dos pilotos de corrida, porém com losangos verdes e vermelhos espalhados por todo o seu espaço, tendo o branco como cor predominante ao fundo. As mangas, compridas, eram acompanhadas em toda a sua extensão por uma fileira de guizos que tilintavam enquanto as duas davam os últimos retoques na fantasia. Surpreendidas pela minha chegada, ainda tentaram esconder a roupa. Magoado, resmunguei:
— Já disse que eu não vou me vestir de palhaço!
— Mas a roupa não é para você, Marquinhos,  —  mentiu mamãe. É para o Rogério. A mãe dele não sabe costurar e pediu para eu fazer.
— O Marquinhos tem o mesmo tamanho do Rogério, mãe. Vamos medir a fantasia nele para ver como fica? — perguntou Natália.
E sem que me dessem oportunidade, mediram em mim a roupa que eu ainda guardava pálidas esperanças em realmente pertencer ao Rogério.
No dia da apresentação, um calor infernal assombrou a cidade. Dirigimo-nos, os três, para o teatro onde seria o espetáculo. No táxi eu ainda protestei, dizendo mais uma vez que não iria participar. Mamãe, sorrindo, tranquilizou-me, afirmando que só iríamos assistir, mas a bolsa que minha irmã levava no colo pelo volume denunciava que eu não teria escapatória.
Dentro do camarim, várias crianças eram aprontadas por suas mães, cuidando de suas fantasias como escudeiros zelavam pelas armaduras dos seus cavaleiros. Sem opor resistência, deixei-me vestir e ser maquiado. Na cabeça, recebi uma peruca improvisada com uma meia feminina cujos cabelos em lã vermelha só aumentaram o calor. Nos lábios, um batom que tornou imprestável o sabor do refrigerante a mim oferecido minutos antes da apresentação. Estava vencido, domado, obrigado pela primeira vez em minha curta existência a fazer algo que eu não desejava.
Fomos chamados ao palco. Palmas nos receberam. As cortinas foram abertas. Resignado, encarei o público. Temia a vergonha de me expor diante daqueles desconhecidos, ser ridicularizado pela minha condição, ainda que temporária, de palhaço. Porém, aquele bando de pais e parentes que compunham a audiência pareceu-me amistoso, quase encorajador. Mamãe e maninha, sentadas na primeira fila, aplaudiram freneticamente a nossa entrada.
Um tanto encabulado, corri os olhos pelos meus sete companheiros de jornada. Todos pareciam deslumbrados com a oportunidade de estarem ali. Por um momento pensei ser apenas eu a criatura destoante da atmosfera de alegria a envolver o teatro. De súbito, a introdução da melodia já tão íntima explodiu nos alto-falantes.
O Palhacinho Dengoso, dá três pulinhos assim!
Desviei os olhos da plateia e procurei executar a coreografia ensaiada da melhor maneira possível. O calor por debaixo da vestimenta incomodava, as gostas de suor banhavam o meu rosto e misturavam-se com as rodelas de ruge que circundavam as bochechas. Uma sensação de total abandono me consumia.
O Palhacinho Dengoso, vira os olhinhos assim!
Esta era a parte do número que eu mais detestava. Tínhamos que nos posicionar de frente para o público, pôr as mãos nos joelhos e ao mesmo tempo arregalar nossos olhos e revirá-los. Tia Sônia havia ensaiado aquele momento até a nossa quase exaustão.  Creio que nossa atuação deva ter causado um efeito arrebatador a julgar o “oh” de entusiasmo emitido pelo público. Percebi, em um canto do palco, Tia Sônia com uma expressão de alegria construída no semblante costumeiramente tão sisudo. Em vez de me sentir recompensado, desejei que os minutos corressem, e que tudo aquilo se encaminhasse para o fim.
O Palhacinho Dengoso, dá piruetas assim!
Meus guizos emitiram um estridente som, fruto das minhas piruetas, executadas com maestria. Deus! Como eu queria ir embora!
Por um momento tudo pareceu distante. Já não era eu que ali estava. Meus pensamentos cavalgavam no cérebro desconexos, enquanto o corpo, vazio de emoções, executava o mecânico bailar. Vieram à minha mente as figuras de mamãe e Natália. “Traidoras”, rosnei. O desejo de chorar apoderou-se de mim, contudo, finou-se, sendo substituído por uma poderosa sensação de alívio ao perceber que a apresentação terminara.
Foi então que algo surpreendente aconteceu, moldando para sempre os rumos da minha existência.
Aplausos pipocaram de várias partes do auditório. Longe de serem polidos, levavam consigo a marca do entusiasmo verdadeiro. A plateia havia amado nossa apresentação. Agradecemos com o conhecido aceno que os artistas fazem ao final do espetáculo, mãos dadas, reverência conjunta. A cortina cerrou-se e o público continuou sua manifestação de agrado. Surpreso, eu e meus colegas presenciamos as cortinas serem reabertas e os espectadores levantando-se para aplaudirem de pé! Sugiram os primeiros pedidos de “bis”, que pouco a pouco cambiaram para o desejo quase unânime da plateia. Os acordes de “O Palhacinho Dengoso” foram novamente executados e, quando dei por mim, já estávamos em plena encenação do nosso número sob palmas frenéticas. E eu estava adorando tudo aquilo!
Décadas consumidas por estas lembranças de infância, sentado diante do espelho do meu camarim, chego a rir refletindo sobre as ironias da vida. Não fosse o Palhacinho Dengoso, meu début nos palcos, eu hoje não seria o aclamado cantor lírico Marcos Marcolini, tenor brasileiro de sucesso na Europa. O sobrenome artístico eu tomei emprestado do espírito que mamãe consultara. Em idas posteriores ao centro de umbanda, o próprio Doutor Marcolini revelara ter sido eu um cantor de operetas, seu contemporâneo em Veneza. Afirmava ele que estivéramos juntos “na experiência da carne”. Segundo o médico do outro mundo, eu voltara com o encargo de brilhar através da arte, incumbência que fracassara na vida anterior. Já Marcolini se viu obrigado a dar consultas por séculos até o resgate de suas dívidas contraídas em outras existências. Ainda que duvidasse das crendices cultivadas por mamãe, não desmerecia a boa vontade do médium pelo qual o doutor renascentista se manifestava e considerei justo homenageá-lo usando seu nome.
Apenas um detalhe intrigava os amantes da ópera e a crítica especializada: por que o grande Marcos Marcolini nunca havia interpretado Pagliacci, de Ruggero Leoncavallo? Diante da dúvida, eu sorria sempre que tal questão brotava em alguma entrevista e, brincando, dizia não estar à altura de representar o personagem imortalizado pelo mito Enrico Caruso para, em seguida, invariavelmente brindar o meu interlocutor com um tostão da famosa ária: “No! Pagliaccio non son, se il viso è pallido, è di vergogna…”

18 de setembro de 2015

Desejo

Estancou maravilhado diante daquele peitão ali à mostra. E as coxas carnudas então? Deixavam qualquer mortal babando de vontade. Entusiasmou-se com sua pele bronzeada, douradinha, cheirosa. Mas era um sonho quase inatingível para ele, um reles mendigo. Resolveu passar o dia esmolando na esperança de conseguir o dinheiro suficiente para saciar o carnal desejo, afinal, também não era ele um filho de Deus?
Terminado o dia, notas amassadas dentro dos puídos bolsos, tomou coragem e foi direto ao assunto.
- Boa noite.
- O que há de boa nela? – foi a resposta indelicada.
- Quanto custa? – perguntou apontando com o queixo.
- Dez real, completo.
- Farofinha também?
- Incluída.
- Vou querer.
Voltou para a praça onde dormia feliz, de posse do suculento frango assado que tanto sonhara. O arrogante e mal-educado português da padaria que se danasse.


16 de abril de 2015

Via Láctea

Viajou dentro da constelação de sardas que banhava o colo nu vialactante da amada, aterrissando no canyon de seus seios cujas aréolas rosáceas destacavam-se à luz artificial feito Fobos e Deimos no horizonte marciano. Pós-cópula, continuaram assim, juntinhos, orgulhoso primeiro casal de astronautas a se amarem no espaço infinito.

20 de março de 2015

Os Traidores

Foto de Amber Inhim
O ambiente apresentava um clima de montanha em virtude da brisa gélida que o ar-condicionado cuspia. A temperatura agradável do quarto não impedia porém que o Doutor Paranhos suasse em abundância. “Doutor!” Rosnou mentalmente Sueli. “Só se for em safadeza. Todo patrão, mesmo semi-alfabetizado e a quilômetros de um diploma, vira Doutor para os subalternos explorados”, filosofava a secretária,  nua, por debaixo do balofo Paranhos que a esmagava com o peso do seu corpo e da sua luxúria.
A cama do motel barato sacolejava ao ritmo dos bruscos movimentos sexuais do Doutor Paranhos que, no decorrer do ato, emitiu alguns grunhidos de prazer, revirou os olhos, trincou os dentes e desabou pesadamente sobre Sueli. A secretária esforçou-se para virá-lo de lado e, após livrar-se do peso que quase a sufocara, respirou fortemente em busca do oxigênio salvador para em seguida constatar que o Doutor Paranhos morrera. O homem não resistira. Os prazeres da cama o haviam liquidado.
Sueli andou desvairada ao redor do quarto, tentando por os nervos no lugar. Contemplando o cadáver, imaginou-se acusada de assassinato, protagonista de um escândalo. Todos descobririam o seu caso com o patrão. E como encarar Dona Laurinda, esposa do Doutor Paranhos, aquela genuína lady? Procurou em sua bolsa um comprimido de calmante, ingerindo-o com uma sobra de cerveja que ficara numa latinha consumida pelo finado. A seguir, ligou para a fábrica, atrás do Almeida.
— Almeida? Sueli. Aconteceu uma tragédia!
— O que houve? Onde você está?
— Em um motel do Centro. Doutor Paranhos morreu, parece coração.
Breve pausa do outro lado da linha.
 — Se acalme e me passa o endereço que eu to indo pra aí. Temos que tirá-lo deste lugar e preservar Dona Laurinda que tem o Doutor na conta de santo.
Almeida trabalhava no setor administrativo da fábrica. Adepto da filosofia do puxa-saquismo e da ciência da adulação, tornara-se em poucos anos o homem de confiança do Paranhos, conhecedor de todas as suas falcatruas nos negócios, acobertador de suas estripulias sexuais com as operárias. Chorou sinceramente alguns minutos a morte do patrão, por quem nutria um subserviente apreço e decidiu que, pela boa imagem da empresa, ele teria um fim digno, longe dos mexericos que um falecimento na cama de um motel de terceira categoria em companhia da secretária de quinta certamente provocaria.
Chegou ao motel trazendo a reboque outro funcionário, famoso por sua discrição. Sueli os recebeu chorosa, vestida. “Uma pena”, lamentou Almeida, desejoso em conhecer como seriam os peitinhos da Sueli que no ambiente da fábrica não passavam de um mero relevo, insinuante, escondido por debaixo das blusas. Doutor Paranhos curiosamente também se encontrava vestido, estendido na cama.
— Sempre ouvi falar que o morto quando esfria fica duro feito pedra, parecendo um bonequinho de chumbo e que é o maior sufoco botar uma roupa no sujeito. Então, eu vesti o Doutor para evitar que ele passasse a vergonha de sair nu no rabecão – Desculpou-se a constrangida secretária.
Almeida foi a beirada da cama e encarou o defunto. O Doutor aparentava sorrir. “Pela cara de sacana percebe-se que o senhor aproveitou muito bem os seus últimos momentos de vida” – pensou.
Os dois homens, ajudados por Sueli, pegaram Paranhos pelos braços e o carregaram até o carro. Aos funcionários do motel, explicaram que o empresário estava vivo, mas passando muito mal e que o levariam para uma emergência, o que fizeram de fato. Doutor Paranhos deu entrada no hospital morto. Falecera no caminho de volta para o trabalho, após passar mal em um restaurante onde almoçava com os três empregados. Esta foi a versão oficial dada à viúva e ao pessoal da empresa.
Velório de primeira, caixão luxuoso rodeado por incontáveis coroas de flores, capela apinhada de gente para dar o último adeus ao agora saudoso Paranhos. O esquife seria carregado até o jazigo da família por membros da Irmandade da Ordem Terceira do Carmo, da qual o defunto fora colaborador. Dona Laurinda, trajando preto, carpia seu querido esposo. Muitos elogiaram as vestes da viúva, pois o luto fechado não era comum nos dias de hoje. Postado ao lado da enviuvada, Almeida recebia os cumprimentos pelo bom gosto na organização do fúnebre evento.
Três jovens mulheres aproximaram-se do caixão e iniciaram em conjunto um pranto descontrolado, provocando comentários ligeiramente indignados por parte dos familiares do Paranhos. Choravam copiosamente em trinca, como que se um querido pai, estimado avô, ou um tio predileto houvessem perdido.
Dona Laurinda discretamente cutucou o Almeida.
 — Qual das três é a tal de Sueli?
 — A do meio, de vestido sóbrio.
 — E as outras duas? Também dormiam com o safado do Paranhos?
— Sim senhora. A de decote escandaloso e perfume barato é Dona Clotilde, do setor de compras, a com cara de Madalena arrependida é a Maria de Fátima, uma das operárias.
Dona Laurinda armou-se de um olhar de profunda repulsa, contudo, tencionando manter as aparências e ser superior as suas ex-rivais, represou o ódio.
— Sou grata por sua dedicação Almeida. A propósito, faça-me a gentileza de passar amanhã em minha residência. Precisamos conversar sobre o futuro da fábrica.
“Rei morto, Rainha posta” – comemorou o bajulador.
No dia seguinte ao enterro, Almeida foi à casa da viúva conforme o combinado. Inesperadamente, encontrou uma mulher sensualmente metida dentro de um decotado vestido florido. A princípio, tal ousadia lhe pareceu uma afronta à memória do Doutor Paranhos, mas ao prestar atenção no corpo carnudo de Laurinda, cinqüentenário mas ainda possuidor de boas formas e relembrando o quanto o falecido a traíra nestes últimos anos, Almeida relaxou nos escrúpulos.
Conversaram sobre os problemas da fábrica, abriram uma garrafa de vinho, falaram mal do morto e fizeram amor por horas a fio no chão da sala de estar. O desempenho sexual da viúva surpreendeu Almeida. Com uma mulher fogosa como aquela dentro de casa, o que o Doutor Paranhos procurava em suas amantes?
Enquanto se vestiam, ainda ofegantes em razão da volúpia, Laurinda lhe ordenou:
— Amanhã, demita a tal de Sueli. Pague os direitos da vagabunda.
Transcorrida uma semana do erótico encontro, Almeida recebeu no trabalho novo telefonema de Dona Laurinda, mandando que ele fosse imediatamente a sua casa. Desligou eufórico. O que acontecera depois do enterro não fora um momento fortuito. A viúva o queria como homem. O telefonema era a prova incontestável. Quem sabe os dois se casariam e, ou invés de uma simples gerência como ambicionava, ele não se tornaria dono daquela fábrica? E Laurinda, apesar da idade, possuía ainda alguns atributos estéticos: “Uma boa meia-sola e ela agüenta mais uns dois anos”,  gracejou, radiante pela sorte que havia pousado em sua vida.
Mal tocou a campainha, foi recebido pela dona da fábrica trajando apenas um conjunto de calcinha e sutiã negros, como convinha a uma enlutada. A viúva, sedenta, praticamente  o violentou no chão da sala. Ao final da cópula, Laurinda mandou:
— Amanhã, demita a tal da Clotilde. E pague os direitos da vagabunda.
Intervalo de mais uma semana e Almeida foi novamente requisitado a casa da viúva. Neste dia, nem roupas ela se deu ao trabalho de vestir. Recebeu o amante nua, em sua sala de estar. Fizeram amor com selvageria e depois do gozo o próprio Almeida se adiantou.
 — Despeço a Maria de Fátima?
 — Sim, e pague os direitos daquela vagabunda com cara de Madalena arrependida.
O novo chamamento de Dona Laurinda desta vez não demorou mais do que dois dias. Almeida chegou a casa da amante cantarolando, com a cabeça recheada de idéias e planos gerenciais. Tencionava mudar tudo na fábrica, fazer as coisas funcionarem a sua maneira. Ia dobrar o capital daquela empresa. Mas antes, convenceria a viúva da necessidade de fazerem um cruzeiro pelo Mar do Caribe, a título de lua-de-mel, pois ele precisaria de um descanso antes de assumir os negócios.
Laurinda o recepcionou friamente. Vestia luto fechado. Estranhando o fato, Almeida, respeitoso, sentou-se no sofá cruzando a perna esquerda de modo que não exibisse a sola do sapato. A viúva acomodou-se de maneira elegante em uma poltrona a sua frente e falou:
— Senhor Almeida. Em respeito aos longos anos de dedicação a minha empresa, eu o chamei aqui para evitar o constrangimento de despedi-lo na frente de todo o pessoal da fábrica. Assim, sugiro que o senhor peça demissão, sem direitos, e evite cenas desagradáveis.
Impactado pela notícia, Almeida somente conseguiu, em meio a balbucios, perguntar o porquê de estar indo para o olho da rua. Laurinda, vitoriosa, cortante feito uma navalha, esclareceu  serenamente.
— É impossível manter em nossos quadros alguém que, conhecendo os segredos do seu patrão, o trai revelando suas torpezas sem que a criatura ainda nem tenha baixado a sepultura. Depois, trai as próprias colegas de trabalho, dedurando-as. E ainda trai pela segunda vez o seu patrão, dormindo com a sua viúva na vil intenção de obter vantagens em sua carreira. A traição impregna o seu caráter senhor Almeida. Como confiar no senhor? Mais tarde serei eu a traída. Passe muito bem!
No dia seguinte, os funcionários da fábrica foram surpreendidos pela carta de demissão do Almeida. Mais admirados ficaram ao descobrirem que o ele renunciara aos seus direitos trabalhistas.



20 de fevereiro de 2015

Somos Todos Capadócios

— Boa tarde, delegado.
— Boa…
— Sabe o que me traz a sua honrada delegacia?
— Certamente, doutor advogado. Veio ver o assassino.
— Preferia chamá-lo de injustamente acusado.
— Como quiser.
— Delegado, não há dúvida que o meu cliente é inocente.
O delegado espantou-se com a notícia.
— Seu cliente?
— Exatamente. A Cúria contratou os meus serviços.
— Era só o que faltava! Doutor, sejamos sensatos!
— Sensatos, delegado? Chama isto de sensatez?
Alojado em frente a sua mesa já carcomida pelos anos de uso, o delegado direcionou o olhar para a única e apertada cela daquela cadeia do interior. Evitou cruzar vistas com o assassino ou, como preferia o advogado, o injustamente acusado. Percebia-se no semblante o desconforto diante da situação.
— Doutor advogado, acredita que somos todos iguais perante a lei?
— Mas é claro. Tal afirmativa é a base da justiça.
— Contudo, alguns são mais iguais que os outros…
— Isto é uma balela, delegado!
— O que o senhor sabe a respeito do caso?
— Que se trata de um lamentável acidente. Todo o povo que assistia a procissão é testemunha.
— Para o povo, foi assassinato, doutor advogado.
O suspiro do delegado poderia ser ouvido até do lado de fora da delegacia, tão minúsculo era o prédio que a abrigava. Recomposto, encarou o advogado.
— Lutero, nós somos amigos de longa data, jogamos truco toda semana no bar do Fulgêncio e você me deu a honra de batizar seu filho. Tenho assim você em alta estima e consideração. Fico constrangido com tudo isso, mas encontro-me de mãos atadas. O que posso fazer?
O advogado levantou-se da cadeira e circulou em volta do limitado espaço que compunha a delegacia. Também não teve coragem de encarar o prisioneiro por detrás das grades enferrujadas. Parecia escolher as palavras para continuar o diálogo com o seu compadre.
— Juventino, meu amigo. Conte-me exatamente o ocorrido, sem esconder detalhes. Juntos, talvez, encontremos uma saída para este caso.
Sabendo poder confiar de olhos fechados no amigo, o delegado pitou seu cigarro de palha e começou a desfiar a verdadeira história.
— Bom, Lutero. Você conhecia a vítima?
— O Geninho? E quem não o conhecia por estas bandas, compadre? Bom menino, estudioso, temente a Deus até as entranhas…
— Pois é compadre, pois é…
— E o que o nosso amigo ali engaiolado tem a ver com isso? Foi vontade de Deus, por acaso? Continuo botando na conta de um infeliz acidente.
Juventino desembuchou os fatos.
— Geninho era tudo isso que você disse e algo mais, compadre. Ótimo filho, trabalhador, prestativo, caridoso. Já foi até anjinho em outras procissões, mas todo mundo tem um fraco nessa vida e o do Geninho foi uma mulher.
— Difícil acreditar, compadre. Ele era tão tímido e católico. Nunca o vi nos braços das meninas lá na casa de diversões de dona Eudóxia.
— Eu não disse mulheres no plural, compadre e sim uma em especial. O menino meteu-se com uma senhora casada aqui mesmo da cidade. Dizem que foi ela que o tentou, afinal, o rapaz tinha lá os seus atrativos e a dita senhora um furor por debaixo das saias. Tanto perseguiu o Geninho que ele caiu nos seus encantos. Provou dos chamegos da dona e gostou. Pois bem, o caso foi levado em segredo por alguns meses até que o marido chegou mais cedo do trabalho, só não pegando o casalzinho em pleno ato porque o pobre finado conseguiu fugir pela janela do quarto sem ser identificado. O marido pôde distinguir apenas um vulto vestindo calças laranja correndo desembestado pelo seu quintal.
— Mas, afinal, Juventino, quem era o galhudo?
O delegado respondeu de modo quase inaudível.
— Doutor Haroldo Fontes.
Lutero por pouco não caiu da cadeira.
— O prefeito?
— E existe outro Haroldo Fontes na cidade, Lutero?
O espanto do advogado não cabia dentro da pequena delegacia.
— Agora, eu entendo tudo.
— Pois é, compadre. Doutor Haroldo Fontes deixou a vingança adormecida por umas semanas para fazer com que ela despertasse justo no dia da procissão do padroeiro. Mas o prefeito me garantiu não ter sido vingança tramada e comida pelas beiradas. Ele disse que até já havia perdoado a primeira-dama pela escapada, afinal, ninguém soubera do acontecido e ele precisava manter as aparências. Acontece que Geninho caiu na besteira de ir à procissão com a mesma calça laranja que usava no dia do quase flagrante.
— Menino burro esse Geninho.
— Também acho, mas como ele poderia imaginar que o prefeito tivesse guardado o detalhe da vestimenta do seu rival?
— Se ainda fosse uma calça azul, ou preta, compadre, vá lá. Todo homem tem uma calça nestas cores, mas laranja? Foi muita bandeira.
— O resto da história você já sabe, Lutero. Vinha o prefeito todo compenetrado na procissão, ombro esquerdo sustentando a parte dianteira do andor quando deu de cara com Geninho dentro da sua calça laranja. A cena deve ter despertado os miolos traídos do homem e deu no que deu. Ele deixou escorregar o andor de seu ombro e a imagem de São Jorge caiu justamente em cima do pobre menino. A lança atravessou o coração do garoto que morreu na hora. O que parecia um mero acidente, como até tu, meu caro, acreditava, foi o despertar de uma vingança adormecida. O próprio Doutor Haroldo Fontes me confirmou em seu gabinete na prefeitura.
Lutero sacou do bolso um lenço e enxugou a testa gotejada de suores causados pela surpreendente revelação de Juventino.
— Por que cargas d’água o prefeito confessou, compadre?
— Remorsos, meu amigo, remorsos. Não pelo Geninho, mas pelo prisioneiro que eu e a brigada fomos obrigados a recolher ao xadrez. Você viu como o povo ficou revoltado com o acontecido, exigindo justiça. Por isso tive que tomar esta decisão para preservar sua integridade.
Os dois olharam em sintonia para o prisioneiro. O delegado acendeu novo cigarro enquanto dizia:
— Nunca imaginei que o Geninho fosse tão venerado na cidade. Quase um santo. Se o povo soubesse a verdade…
— Preferiram um santo de mentirinha ao de verdade, compadre.
— É, amigo Lutero, o povo nunca tem razão. E os poderosos sempre escapam justamente por serem poderosos. Por estas e outras é que não vou acusar o prefeito. Quanto ao seu cliente, não se preocupe. Com o tempo o povo se acalma, esquece o Geninho e eu o libero. Na procissão do próximo ano ninguém vai lembrar de nada e a Cúria fica satisfeita. Estamos acordados, Lutero?
Dentro da cela, a imagem de madeira maciça em tamanho natural de São Jorge montado em seu cavalo parecia lamentar o acordo espúrio firmado entre o delegado e o advogado cujo cínico aperto de mãos ele era única testemunha. Juventino ainda pitou pela derradeira vez o seu cigarro de palha antes de filosofar:
— Na verdade, compadre, somos todos uns capadócios, sem exceção.
O advogado assentiu, flexionando a cabeça.

22 de janeiro de 2015

Carta a Marcus Gunn

Caro Marcus Gunn
Acuso, com tristeza, o recebimento da síndrome que me enviaste. Choro a cada refeição a lágrima solitária, mecânica e sem vontade. É inevitável, Marcus, afinal, mastigar é preciso, chorar, vez por outra, contudo que no choro morem sentimentos. Certa vez um garçom inquiriu-me a respeito da lágrima periférica escorrendo pela face destra. Espante-se, Marcus. Pensava ele que a comida não me apetecia. “Está ótima”, disse, fungando.
Conheces a obra de Nelson Rodrigues? Viste o filme onde uma colegial mata sete gatinhos? Certamente que não, pois és estrangeiro, sabe-se lá de onde. Santo Google nada informa sobre suas origens. Pois bem. Não há de conhecer o Bruxo Nelson, porém lhe informo, contrariado: não sou o demônio que chora por um olho só!
Cordialmente
Aquele que não perdeu a batalha.

16 de janeiro de 2015

A Polaquinha

Mestre da narrativa curta, quase haicais em forma de prosa, Dalton Trevisan sempre foi cobrado pelos seus leitores a aventurar-se em uma história mais longa. Dezoito livros de contos depois nascia, em 1985, A Polaquinha, novela de que narra as estripulias de uma jovem curitibana no universo do sexo.
Polaquinha, cujo verdadeiro nome nunca nos é revelado ao longo da narrativa, leva uma vida medíocre, com namorados e amantes não menos ordinários do que ela. O primeiro, um moleque asmático, o segundo um jovem imberbe com problemas de coluna trocado por um advogado mau caráter e manco que por sua vez dá lugar a um motorista de ônibus de maus bofes e desempenho na cama proporcional à sua canalhice. Todos eles, de uma forma ou de outra, usam e abusam de Polaquinha que, mergulhada em um oceano de prazeres, deixa-se levar passivamente.
A prosa é enxuta, levemente pornográfica, contudo divertida. Rimos. Às vezes um riso de compaixão por uma moça que se deixa ingenuamente enganar por tipos de homens tão baixos, mas presentes no imaginário brasileiro. Em outras ocasiões o riso é amarelo, de identificação. Quantas Polaquinhas já não foram vítimas da nossa lábia, canalhas de plantão?

Os capítulos finais do livro simbolizam de certa forma a tragicômica mesmice em que Polaquinha se meteu (trocadilho forçado), numa constante troca de parceiros em um dia comum de uma moça que decide “dar-se” para ganhar uns trocados a mais dentro de um bordel fuleiro. O texto quase que se repete, inclusive nos diálogos, a despeito da rotatividade de clientes. Polaquinha nos desperta compaixão, pero sin perder la sensualidad.

9 de janeiro de 2015

Entreouvidos por aí ou quando suas intimidades se tornam públicas ao você berrar no celular.



FARMÁCIA/INTERIOR/DIA
- Não, fiquei brigada com o Maurinho quarta, quinta e voltei a falar com ele agora de manhã. Por quê? Sabe naquela altura da relação quando o seu namorado começa a postar vídeos de bundudas-peitudas malhando na academia?

2 de janeiro de 2015

Cenas de um mundo muderno.

- Que ideia é essa, menino? Namorar justo a minha filha?
- Foi mal, tio.
- É a sua prima, animal!
- Pelo menos fica tudo em família.
- É se vocês casarem e tiverem filhos? Eles podem nascer aleijados!
- Esquenta não, tio. Não é namoro para casar...