31 de julho de 2010

Elle Voltou*

A cena se passa em 1992, poucos meses antes do impeachment. Elle, dentro das suas atribuições de Chefe de Estado, era o convidado de honra da inauguração um centro de ensino. Eu não passava um simples estagiário de jornalismo de uma instituição de ensino profissionalizante que havia montado uma oficina para aprendizagem industrial naquela escola cuja sigla – CIAC ou CAIC – soterrou-se em minha memória. Já havia explodido o escândalo em que o tesoureiro de sua campanha eleitoral fora acusado de controlar uma gigantesca fatia do Orçamento Nacional e Elle fugia dos jornalistas como diabo da cruz evitando explicar o que aos olhos da nação era inexplicável.

Reles estagiário que era, imaturo e ávido por agradar meus chefes, fora incumbido de conseguir algumas palavras positivas de Sua Excelência sobre a nossa instituição. Os jornalistas e fotógrafos estavam mantidos á distância por um cordão de isolamento e eu ficara próximo a Elle devido a minha credencial de funcionário. Gravador portátil escondido no bolso do paletó, aproximo-me da comitiva que o acompanhava ainda receoso em abordar a pessoa mais importante da nação em momento tão desfavorável, mas a pressão exercida durante toda a semana para que eu executasse minha “missão” fez com que eu deixasse temores de lado e, quando me foi dada a oportunidade, tirei o gravador do bolso, coloquei-o próximo a Excelentíssima boca e iniciei a pergunta: “Presidente: o que o Senhor achou...”

Acuado, contrariado, Elle segurou meu braço com firmeza e fulminou-me com um olhar. Não lembro o que Elle me disse. Talvez uma simples negativa, ou um “por favor” inundado de rancor. Sei apenas que gelei diante daquele olhar raivoso e fiquei estático, no meio da pequena comitiva, sem atentar para o que a minha inconseqüente ousadia poderia me custar, como a intervenção mais voluntariosa de um segurança presidencial, fato que, felizmente, não ocorreu.

Minutos após a saída Delle, uma das minhas chefes perguntou se eu havia, “gravado” as palavras do Presidente sobre a nossa entidade. Diante da minha negativa e sem esperar explicações, ela “collorida até a alma”, ensaiou um pequeno escândalo, mas quem sabe ao lembrar-se de onde estávamos, guardou para si a sua afetação.

Confesso que durante algum tempo minhas noites de sono foram interrompidas por pesadelos com Elle e o episódio em que protagonizáramos, todavia, outubro daquele 1992 chegou e Elle foi-se embora da Presidência da República e eu o esqueci.

Semana passada, ligo a televisão e constato que Elle voltou para cumprir um mandato de oito anos como Senador. Está bastante envelhecido para os seus 57 anos. Eu também envelheci, considero-me amadurecido – seria impensável eu abordá-lo hoje da maneira que fiz há 15 anos – e espero sinceramente que Elle também esteja para que eu e os mais 180 milhões de brasileiros possamos dormir em paz, longe de pesadellos escabrosos.

*Crônica escrita em fevereiro de 2007, republicada em virtude do reaparecimento da truculência do personagem em questão.

30 de julho de 2010

Por Onde Andam os Cupins Alados?

Agosto, mês do desgosto. Nunca concordei com a afirmativa. Agosto é o mês de aniversário da minha mãe e de outras pessoas que prezo. Dizem que agosto carrega consigo durante seus 31 dias calamidades, tragédias e pequenos dissabores dentro do nosso cotidiano. Sinceramente, não me lembro de nenhum fato abominável ocorrido nesse mês. Talvez eu tenha memória fraca ou seja um total ignorante em datas catastróficas. Getúlio se suicidou em agosto, não?

O certo é que agosto para mim era o mês dos cupins. Quando criança, esperava ansiosamente o primeiro dia quente de agosto, geralmente na segunda semana do mês quando fazia um calorão pré-primaveril e mal a noite caía, lá vinham eles, cupins alados em seu voo a tomar conta de todas as luzes possíveis. A iluminação pública ficava apinhada de insetos alados bailando ao seu redor. Quem não fechasse as janelas após as seis da tarde corria o risco da incômoda presença daqueles incontáveis bichinhos em volta do seu lustre. E nada adiantava apagarem-se as luzes. Alguns cupins, renitentes, ao invés de procurarem outras paragens, permaneciam em minha casa, buscando abrigo na luz que a tela do televisor emitia. As novelas da época se transformavam em trash-movies com galãs e mocinhas canastreando seus papéis sob o testemunho de um enxame de insetos.

Rezava a lenda que, ao perderem as asas, os tais cupins se embrenhavam pelos tacos, mesas, cadeiras, armários, estantes ou qualquer outro móvel de madeira para lá instalarem sua morada definitiva e iniciarem a procriação. Seguindo tal raciocínio, todos os cupins seriam rainhas e, caso toda rainha sobrevivente fundasse o seu cupinzeiro particular, bilhões de cupinzeiros brotariam mundo afora e agosto realmente seria um mês catastrófico. Em verdade, nem tenho certeza se aqueles bichinhos que povoam minhas lembranças infantis se tratavam realmente de cupins.

Minha tia-avó não perdia tempo com tais hipóteses. Para ela, eles eram sim cupins e não mereciam clemência. Sua arma para combater o inimigo voador consistia em uma bacia d’água, estrategicamente posta abaixo de uma lâmpada qualquer. Segundo a titia, os cupins confundiriam o brilho da luz refletido no espelho d’água e mergulhariam para a morte certa. Quando eu visitava minha tia nas noites agostinas passava horas de olhos atentos, grudados na lâmpada do teto e na sua bacia colocada no chão, na eminência de presenciar um holocausto de invertebrados. Todavia, creio que os cupins iam parar na bacia mais de cansados ou por perderem uma das asas por alguma colisão durante o vôo do que vitimados pelas artimanhas da tia, visto que poucos caiam em sua armadilha.

Os anos transcorreram comigo deixando pouco a pouco o bailar dos cupins. Já adulto, me esquecera completamente daqueles tormentos voadores, até que, em um certo anoitecer de um dia abafado, um solitário cupim fez seu vôo nupcial em volta de uma lâmpada dentro do meu apartamento. Aquele misantropo ser me deixou a sensação de que o tempo havia passado como flecha e que o homem, este único ser capaz de modificar o meio onde vive, está mudando a ordem das coisas neste planeta.

No último dia de agosto, vi amendoeiras enganadas, deixando cair aos seus pés folhas amarelas como se outono fosse. Por onde andam os cupins alados? Com a resposta, os destruidores dos ecossistemas.

Destaque no VI Concurso Rubem Braga de Crônicas, Academia Cachoeirense de Letras - 2009

25 de julho de 2010

No Elevador

Voltar para casa o deprimia. A expectativa de, após um dia de trabalho ouvindo os berros animalescos de seu Djalma tratando-o como um reles vassalo; abrir a porta de casa e topar com a megera, estendida no sofá, devorando bombons e metida em um enorme robe cor-de-rosa era um desajuste para qualquer mortal. Fosse só isto, ele até que poderia tolerar, mas as cobranças, humilhações e o desprezo iam minando, dia após dia, o que ele e a esposa ainda fingiam ser um casamento.

— Bancário! – exclamava a esposa carregando no desprezo, boca marrom de chocolate – Não passas de um medíocre e vil bancário! E pensar que eu podia estar casada com o Deputado! Que triste sina a minha!

No decorrer dos anos, passou a ter nojo de chocolate. Bastava o cheiro para nauseá-lo.

Sua angústia diária tinha início dentro do elevador do prédio onde morava. Acompanhava o lento passar da cabine pelo andares até chegar àquele palco seu tormento. “Lar, doce lar”, resmungava em tom irônico.

Naquele final de tarde tudo parecia caminhar para a mesma rotina de achincalhes promovidos pela megera. Apertou o botão de chamada do elevador e esperou que ele chegasse até o térreo. Quando fechou a porta ouviu uma súplica.

— Sobe?

Era uma voz adocicada, mansa, suave, em tudo contrastante com o tom estridente e marcial de sua esposa. Curioso e gentil, segurou a porta do elevador. Ela sorriu para ele em sinal de agradecimento. Tratava-se não de uma mulher exuberante, mas alguém que estava elegantemente vestida e denotava alguma sofisticação. Seus gestos eram refinados e um leve perfume agradável exalava de sua pele. Saltou no décimo andar, sacudindo a cabeça em sinal de boa noite.

Desde aquela data, a curta viagem de elevador tornou-se o melhor momento do seu dia. A presença daquela mulher e os quase monossilábicos cumprimentos pareciam amenizar todo o peso do cotidiano desprezível de sua existência. Ansiava por aqueles minutos, chegava a fazer uma horinha no hall social do prédio esperando que ela chegasse, forçando a coincidência do encontro. Entristecia-se caso ela não aparecesse e renovava a suas esperanças para o dia seguinte.

Numa tarde, enquanto esperava o elevador já desapontado pela ausência da sua admirada, ela surgiu no hall social. Chorava. As lágrimas inundavam seu rosto, umedecendo os olhos redondos. Não havia ainda prestado atenção na beleza dos seus olhos castanhos. Na verdade, o tempo da viagem era demasiadamente curto para se prender a detalhes.

— Posso ajudá-la, moça?

Sacudiu negativamente a cabeça.

Ele ofereceu um lenço, prontamente aceito. O elevador chegou.

— Sou feia?

— Não.. imagina...

— Pareço uma pessoa sem atrativos? Me visto como uma freira?

— Claro que não!

— Ele acha que sim – disse soluçando – que fazer amor comigo é como beber água. Algo sem gosto, sem graça.

— Ele deve ter dito isto da boca pra fora – disse ele enquanto entravam no elevador.

Assim que a porta fechou, ela inesperadamente o agarrou, beijando-o com volúpia. Entre o correr dos andares, amaram-se de pé, vestidos. Parcos minutos de prazer até o elevador alcançar o décimo andar.

Os encontros passaram a ser diários. Quando havia uma ou mais pessoas esperando o elevador, eles aguardavam a oportunidade de subirem sozinhos. Caso um ou outro estivesse com o seu companheiro, fingiam indiferença e desconhecimento, um tanto desapontados pela oportunidade perdida. Amavam-se dentro da cabina, respiração ofegante, um misto de prazer e medo de que os respectivos cônjuges pudessem estar do outro lado da porta, no andar seguinte. Arrumavam-se rapidamente ante a aproximação do andar onde ela morava. Era automático, sem preliminares, sem nomes, curiosidades sobre a vida de cada um. Nada os atrapalhava naqueles breves momentos de paixão. Somente o ato de amor os consumia.

Um dia, um blecaute tomou conta do Rio de Janeiro. A cidade foi invadida por um breu no começo da noite. Tudo parou, inclusive o elevador onde os amantes estavam. Os bombeiros, ao abrirem a cabina, parada entre dois andares, os encontraram risonhos, nus e gargalhantes, suas roupas espalhadas por todo o elevador. Ela agora sabia que ele se chamava Mauro. Ela, Andréa. Tiveram tempo.

Finalista no II Prêmio Litteris de Cultura - 2005

Caim Está Entre Nós

Levava vida insignificante em uma cidadezinha do interior. Jovem filho de um político local, não foi difícil arranjar colocação no único jornal daquela comunidade provinciana. Sob o grosso manto do emprego intermediado pelo pai, produzia artigos verborrágicos que julgava admiráveis. Aos sábados, semanário dobrado e encaixado sob a axila esquerda, desfilava sua arrogância pelos bares da cidade.

Era alvo constante dos louvores do seu chefe, um editor atolado em dívidas com o tal político e tão medíocre quanto ele. Em verdade, o destino — este sarcástico incurável — ligara as três personalidades apagadas: o Pai, o Filho e o Espírito Pouco Santo do editor.

Acreditando estar escorado pelo prestígio paterno, ficou abalado quando certa tarde o editor lhe fez uma pequena crítica. Construtiva ou não, o chefe lhe dissera que faltava vida no artigo que escrevera. Voltou para casa amuado, deitou-se na cama, encarou o teto e chorou seu primeiro fracasso.

As críticas se tornaram cada vez mais freqüentes. Tentava argumentos que imaginava sólidos, mal disfarçando sua irritação. Cheio de mimos, odiava ser contrariado, pois crescera desconhecendo o significado de uma negativa aos seus caprichos. Em seu íntimo, estabeleceu assim que o editor não passava de um incomensurável cretino, esquecendo que o considerava genial quando antes o elogiava.

Dando seqüência a sua orgia de rancores, decretou que o editor era o maior idiota já parido pela humanidade quando ele passou a desfiar elogios aos textos de uma estagiária de pernas grossas, recentemente contratada.

Neste dia embebedou-se e vomitou o seu despeito.

Passou a acompanhar com avidez as matérias escritas pela estagiária, apontando defeitos nos textos da mocinha e, em contrapartida, auto elogiando-se. Já não era bem visto no jornal e começou a ser evitado pelos colegas na redação que o travavam pelas costas de Caim, o invejoso.

Ao ser foi publicamente censurado pelo editor ao trocar em uma matéria o nome de uma autoridade estadual em visita a cidade, voltou para casa furioso, ligou para o amante clandestino e exigiu prazer naquela noite como tentativa de apagar sua sensação de derrota.

Todo o ódio reprimido explodiu ao saber que o editor tinha um caso amoroso com a estagiária de pernas grossas. Como nutria uma paixão platônica pelo chefe, sentiu-se duplamente traído em sua vida sentimental e jornalística.

Naquele dia, não voltou para casa, não chorou seu fracasso, não vomitou o seu despeito em álcool e muito menos aplacou suas frustrações nos braços de um rapaz. Matou a estagiária com cinco facadas e, vestindo as roupas da vítima, bateu na porta da casa do objeto de sua paixão. Ao atender, o editor pasmou-se com aquela caricatura de mulher, sangue maculando as mãos, rosto desfigurado pela insânia, desesperadamente a gritar: “Eu te amo!”.

Menção Honrosa 1º Concurso Literário Anônimos Escritores - 2005

24 de julho de 2010

A Ferro e Fogo

Waldemar era Flamengo até morrer. Flamenguista daqueles emotivos, de não faltar a um clássico no Maracanã, de atormentar a vizinhança ouvindo o jogo pelo radinho em volumes cavalares, de assistir compenetrado as mesas redondas nos finais de domingos televisivos, de discutir com argumentos passionais cada lance das partidas no boteco da esquina. Tudo em honra ao querido mengão. Waldemar era fanático até as pontas das unhas.

Apenas um sentimento era capaz de igualar-se em calibre com o seu amor a equipe rubro-negra: o imenso ódio que Waldemar nutria pelo Vasco da Gama. Era algo irracional, um tanto infantil, fugindo a salutar rivalidade futebolística onde um sujeito gozava o amigo no trabalho ou no bar após uma goleada aplicada por seu time no maior adversário. As máximas que Waldemar cunhava a respeito do clube odiado assustavam seus interlocutores. “O caráter de um homem se mede pelo time que ele torce. Ser vascaíno é uma deficiência de caráter”, costumava dizer, solene, durante a roda de chope. Ao redor da mesa, não se ouvia uma voz clamar em protesto contra tamanha afronta, talvez por que Waldemar fizesse questão de não cultivar amizades que porventura torcessem pelo Vasco.

Solange, a esposa, muito fazia para diminuir tanto a ira vascaína quanto a idolatria flamenguista que o marido semeava. Lembrava a Waldemar os episódios em que conhecidos haviam se afastado do casal, sobretudo os que torciam pelo clube de São Januário e, sem esconder sua irritação, alertava não estar em condições de disputar o amor do esposo com um time de futebol.

— Você liga mais para este Flamengo do que para mim.

— Será que eu não posso ter uma diversão? Trabalho feito um mouro durante a semana. Não posso nem curtir o meu mengão aos domingos? – contra-atacava o esposo.

Ela tolerou seu fanatismo durante anos, mas quando Waldemar a presenteou com uma camisa do Flamengo em seu aniversário, Solange decidiu procurar um homem que lhe desse mais carinho e atenção.

Há algum tempo ela andava de olho em Claudinei, um desocupado do bairro, portador de um sorriso sedutor, bom de conversa fiada, que vivia zanzando pelos bilhares e pontos de jogo do bicho das redondezas e, segundo ouvira falar, vascaíno. O sujeito sempre a olhava com intenções devoradoras, cara de “tô querendo” e, na primeira oportunidade, surgida quando os dois se esbarraram dentro de um ônibus em direção ao Centro da Cidade, Solange se deixou fisgar pelo malandro.

Marcaram encontro para o dia seguinte em um motel vagabundo na Praça da Bandeira. Mal chegaram ao quarto, Solange foi logo perguntando:

— É verdade que o gato é vascaíno?

Em resposta, Claudinei, armado do seu mais caricato olhar sem-vergonha, livrou-se da camisa e exibiu o torneado braço esquerdo onde reluzia um imenso escudo tatuado do Vasco da Gama. Encantada, Solange languidamente lambeu aquela tatuagem para deleite de Claudinei que a tomou nos braços e a possuiu com voracidade. O malandro nascera para o ato sexual e fez coisas inimagináveis com Solange que, extasiada, cantarolou durante o gozo alguns versos do hino vascaíno que ensaiara de véspera para a ocasião. “Vamos todos cantar de coração, a Cruz de Malta é o meu pendão, Tu tens o nome de um heróico português, Vasco da Gama, a tua fama assim se fez”.

E os encontros dos amantes tornaram-se diários, sob o próprio teto do Waldemar. Bastava ele sair para o trabalho e Claudinei embiocava-se sem cerimônias casa adentro.

O flamenguista se descobriu traído no dia em que uma indisposição gástrica o fez voltar mais cedo do trabalho. Da sala Waldemar escutou grunhidos amorosos vindos do seu quarto e não precisou usar de todos os seus miolos para entender o que se passava por de trás da porta. Invadiu o quarto aos berros e a única cena testemunhada foi a da esposa tentando vestir-se atabalhoada e um vulto, só de calças, disparando quintal afora para em seguida pular o muro divisor do terreno vizinho. Do tal homem, Waldemar guardou em sua retina tão somente a imagem do distintivo vascaíno tatuado no braço.

Não conseguiu distinguir que dor o lancinava mais: a traição escancarada ou o fato do amante de Solange torcer pelo Vasco. Diante de uma esposa semivestida, descabelada pelos carinhos do desconhecido, paralisada pela vergonha e pelo medo de sua reação, um atônito Waldemar sentou-se mecanicamente em sua cama de lençóis em desarranjo e cheiro de sexo recente, contemplou o quadrado da janela, testemunha da fuga do sujeito que dormira com sua mulher e, munido de uma inacreditável fleuma, talvez por conta do choque, disse com a emoção de um zumbi dopado.

— Mulher... Me arranja um remédio pra dor de barriga. Hoje eu estou que não me aguento. Não sei o que comi!

Por semanas Waldemar catou em todo o bairro aquele que possuía impresso no braço a marca cruzmaltina de sua humilhação. Vasculhou nos pés-sujos, sinucas, mesas de carteado, campinhos de pelada, puteiros e nada. Claudinei, prudente e desconhecedor de que não fora identificado, pôs asas nos calcanhares e buscou exílio em outras bandas.

Os dias seguintes ao incidente transcorreram com Solange dominada por um estado de perplexidade aliviada, pois Waldemar continuou tratando-a como se o flagrante nunca houvesse se consumado. Não fosse a tristeza construída em seu olhar e o abandono da obsessão pelo Flamengo, a esposa juraria que ele era o mesmo de sempre, inclusive nas noites de sexo burocrático debaixo dos lençóis e tendo como única testemunha o brilho da lua invadindo o escuro do quarto. Nestes momentos de amor mecanizado, Solange quase chegou a admirar Waldemar, que escolhera por manter seu casamento ao invés do escândalo do adultério. Entrementes, debaixo de seu marido, ouvindo seus arfares, consumia-se em saudades de Claudinei. “Por onde andaria o safado?”

A pergunta que Solange se fazia, Reginaldo Meia-Bunda tinha a resposta. Seu apelido politicamente incorreto resultara de uma poliomielite contraída na infância que atrofiara toda a musculatura da perna esquerda, deixando-o manco. Desprezado pelas mulheres e objeto de chacotas dos homens do bairro, Reginaldo Meia-Bunda pouco tinha de distração além do exercício da maledicência e o prazer pela intriga. Ouvidos apurados, captou notícias aqui e acolá a respeito de uma possível traição da mulher de Waldemar e, como percebera o sumiço do vascaíno Claudinei por aquelas bandas, juntou as peças do quebra-cabeça e, deleitoso por um escarcéu, decidiu encontrar o fugitivo. De fuxico em fuxico Meia-Bunda logo chegou ao paradeiro de Claudinei, morando em uma cabeça de porco nas franjas do bairro de Santa Cruz.

E numa mesa de boteco, tendo por testemunhas parcas rodelas de salame como tira-gosto e duas tulipas de chope, Reginaldo Meia-Bunda revelou ao flamenguista o nome e endereço do amante de sua esposa. Waldemar, se perturbado pela notícia não demonstrou, pesquisou em sua mente alguma referência ao tal de Claudinei e encontrou uma vaga lembrança, meio desbotada, de uma inflamada discussão travada tempos atrás com um fulano sobre quem fora o melhor: Zico ou Roberto Dinamite? Não tinha certeza de tratar-se do mesmo personagem, mas isto não vinha ao caso agora. Perguntou a Meia-Bunda o porquê da delação.

— Por quê? – Reginaldo cutucou um pré-molar com a unha para livrar-se de um fiapo de salame preso entre os dentes antes de responder. — Por inveja! Pela mais pura e avassalarora inveja do sucesso de Claudinei com as mulheres. Algo que um manco de perna seca como eu nunca há de conseguir.

Uma torrente de desprezo invadiu Waldemar. Aquele dedo-duro, sentado a sua frente, a revelar choramingando agir movido apenas pelo sentimento de inveja, provocou-lhe náuseas. Reginaldo Meia-Bunda era pior do que sua mulher e o amante. Sujeito vil, X-9 de merda, que nada ganharia com a sua delação. Um cara mau, covarde e mau. Waldemar teve ímpetos de esbofeteá-lo ali mesmo, mas sabedor que necessitaria do manco para a realização do plano maquinado em velocidade recorde enquanto ouvia a sua nojenta caguetagem, conteve-se. Apertou o braço esquerdo de Meia-Bunda e, portando cínica ternura no olhar, pediu:

— Reginaldo, meu querido, nem tenho como agradecer sua preocupação. Você demonstrou ser meu amigo. Quando eu morrer, vou arrastar para dentro do meu túmulo a consideração que você teve comigo. Nunca esquecerei seu gesto e, em nome da nossa amizade, peço um último favor.

— Claro, claro, como negar?

— Preciso que você escreva uma carta para minha mulher, de preferência datilografada ou escrita num computador, se você tiver um, como se fosse o Claudinei marcando um encontro com ela, prá daqui uns quinze dias, lá na casa dele...

Reginaldo assustou-se diante da possibilidade de ser o responsável por um crime passional. Não imaginara que sua intriga pudesse ir tão longe.

— Tú vai matar o cara Waldemar? – perguntou em murmúrio aterrorizado.

O marido traído, sem largar o braço do manco, falou tranquilamente.

— Dou minha palavra de honra. Por São Judas Tadeu de quem sou devoto e pelo Flamengo, juro que não.

— Jura que nem vai capar?

— Juro...

Um par de dias após sua conversa com Reginaldo, Waldemar testemunhou uma certa alegria incorporada ao semblante da esposa e, concluiu, satisfeito, que o Meia-Bunda cumprira o combinado. Ao anoitecer, enquanto Solange tomava banho, remexeu os pertences da mulher descobrindo a carta. Ao correr os olhos pelas linhas datilografadas, o marido traído percebeu em Reginaldo dotes românticos e literários, tanto que chegou a enciumar-se do estilo do manco, cheio de mesuras e algumas pitadas de erotismo nas metáforas dirigidas a sua mulher. Mais uma vez controlou-se, anotou data e hora do encontro, devolveu a carta ao lugar onde a encontrara, tomou um comprimido inteiro do seu calmante predileto e deitou-se para dormir o sono dos justos. Ao sair do banho, Solange encontrou Waldemar a roncar, portando um estranho sorriso em sua face adormecida.

Na manhã seguinte Waldemar saiu bem cedinho de casa e, ao invés de ir ao trabalho, zarpou para uma serralharia lá pro lados da Piedade. Encontrou a loja fechada em virtude da hora e gastou alguns minutos do outro lado da calçada, esperando a abertura do comércio. Mal o estabelecimento ergueu suas pesadas portas de ferro, lá estava Waldemar falando com um sujeito gordo e suarento, aparentando ser o gerente.

— O que o senhor quer vai custar caro. É quase um trabalho artístico.

— Sem problemas. Eu pago.

— Não é comum uma encomenda dessas.

— Dá ou não dá pra fazer?

— Sim, é claro. É que eu fiquei intrigado. Nunca me pediram uma coisa assim.

— Sempre há uma primeira vez. Quando fica pronto?

Reginaldo Meia-Bunda andava tenso por aqueles dias. Desde a sua deduragem no boteco e o envio da carta a Solange, Waldemar não mais se manifestara. Meia-Bunda aguardou, preocupado, pela passagem dos quinze dias combinados para o encontro, fiando-se na promessa do flamenguista que não iria matar ou ainda castrar o rival. “E se ele fizesse algum mal a esposa?” perguntou-se agoniado, afinal, Waldemar não jurara pela integridade da mulher. Concluiu que não poderia confiar plenamente em juras ou promessas. “Quem mantinha sua palavra nos dias de hoje?” lamentou.

Dormiu um sono picotado na véspera do dia marcado. Acordou em sobressalto e mal raiou o dia, armou tocaia na porta da casa de Waldemar. Escondido, Reginaldo, presenciou o flamenguista sair para o trabalho e, quando duas horas depois uma perfumada e rebolativa Solange botou o pé na rua, certamente em direção a Santa Cruz, o manco pensou em aborda-la, fazer uma confissão, revelar-se um crápula, evitar que ela rumasse para uma suposta morte, mas ao imaginar a tríplice ira do marido, esposa e amante se abatendo sobre ele, na sua visão um pobre aleijado, preferiu calar-se e, resignado, acompanhou com as vistas uma Solange metida em um sensual vestido colante irradiando alegria pelos poros dirigir-se para o ponto do ônibus.

As horas custaram a passar e Reginaldo viveu aquele dia atormentado pela culpa do assassinato anunciado. Trancado em sua casa, de súbito, foi tomado pelo pavor de ter que se explicar à polícia caso Waldemar relatasse como descobrira a traição. Em sua mente pairou mil enredos acerca da morte de Claudinei. Waldemar usaria uma faca? Revólver lhe pareceu clichê. Infidelidade se resolvia na ponta de uma faca, cara a cara com o traidor, imaginou. No cair da noite, tentou espantar os pensamentos sanguinolentos de sua cabeça ligando o radinho de pilha mas, obra do destino, a estação sintonizada transmitia um popularesco programa policial.

“aonde vamos parar minha gente! É o império do crime, da maldade, do sadismo! Honra antigamente se lavava com sangue, agora honra é marcada a ferro e fogo, literalmente queridos ouvintes. Caso você duvide, preste atenção no drama acontecido hoje, no bairro de Santa Cruz. Waldemar Cristiano de Souza, 35 anos, vendedor, descobriu que sua companheira, Solange Maria Pinto de Souza, 30 anos, dona-de-casa, estava tendo um romance com Claudinei Adalberto Ribeiro da Silveira, 27 anos, sem profissão definida. Enfurecido, Waldemar invadiu a casa do Claudinei em Santa Cruz e flagrou o casal de pombinhos, digamos, namorando. Portando um revólver, ele amarrou e amordaçou os adúlteros e, com um ferrete de marcar gado, queimou todo o corpo do pobre Claudinei. Vingança planejada friamente ouvintes! Waldemar mandou fabricar o tal instrumento em uma serralharia da Piedade, como já confirmou em depoimento Antonio Sacramento, dono do estabelecimento. O mais inusitado ouvintes, foi o tipo de marca que Waldemar encomendou. Torcedor do Flamengo, o marido traído marcou em ferro incandescente o escudo do seu time de coração por todo o corpo do amante de sua mulher. E por qual time Claudinei torce? Pelo Vasco!!! O maior adversário do Rubro-negro! Claudinei está internado na unidade de queimados do Hospital do Andaraí e, segundo os médicos que o atenderam, irá sobreviver mas terá que conviver para sempre com o escudo do Flamengo cicatrizado por quase todo o seu corpo. Solange, ainda chocada com os acontecimentos, relatou aos policiais que Waldemar foi particularmente cruel com a tatuagem do emblema do Vasco que Claudinei trazia em seu ombro esquerdo, ferindo-o diversas vezes. O monstruoso Waldemar encontra-se foragido...”

Pálido, Meia-Bunda desligou o rádio. O único pensamento alojado em sua mente foi que Waldemar cumprira a palavra. Não matara, nem castrara...

Crônica Rodrigueana de uma Traição.

Amava as duas sem distinção. Eram suas mulheres, mães de seus três filhos. Rosalina lhe dera dois meninos, Marcela completara o trio. Eventualmente, Afonsinho se penitenciava por não ter feito mais um rebento em Marcela, achando que privilegiara Rosalina no número de crianças, tanto que, deu cambalhotas de alegria quando viu a barriga de Marcela crescer, anunciando mais um herdeiro. Dois a dois, peleja empatada. A criança no bucho restabelecera a justiça.

Pairava sobre ele o horror ante a possibilidade de estar beneficiando uma em detrimento da outra e por isto procurava dar tratamento igualitário às suas duas mulheres. O mesmo padrão de vida, carinhos equilibrados, presentes exatamente iguais. Ao atinar que o lugar onde ele morava com Rosalina três dias por semana ficava aquém em estrutura ao que vivia outros três com Marcela, mudou-a para o mesmo bairro, mesma rua, casas semelhantes em números de quartos e área construída. Afonsinho era um socialista e não sabia. Transbordando escrúpulos pelos poros, uma vez por semana, com o intuito de equilibrar possíveis diferenças em suas relações familiares, ele dormia em um hotel mixuruca no Centro da Cidade, sozinho, pois não cogitava de modo algum ter uma amante. No sétimo dia, biblicamente descansava.

O ousado plano em alojar suas esposas na mesma rua só foi possível por se tratar de uma avenida longa, a atravessar todo o bairro. Marcela ficou numa extremidade da rua, Rosalina na outra ponta. Possuía Afonsinho a crença de que esta estratégia impossibilitaria o encontro casual das duas. Para enganá-las, simulava trabalhar como vendedor pelo interior do estado. Assim, quando iludia uma das mulheres fingindo viajar a negócios, significava que estava com a outra esposa e, de acordo com este esquema, uma delas era sempre enganada. Em verdade, Afonsinho tinha um pequeno escritório de cobranças, fato que as duas desconheciam por completo. Ele vivia uma farsa de anos para não magoar seus dois amores e se ver desobrigado a optar por um dos seus lares, destruindo o preterido. Nem ele queria isto. Desejava, viver como estava vivendo, dividindo entre suas duas famílias.

Seu plano perfeito começou a ruir na sala de espera do consultório do Doutor Dinorah, um ginecologista muito conceituado por aquelas bandas. Um leve corrimento levou Rosalina à sala de espera do médico, justo ela que abominava exames ginecológicos. Acreditava estar sendo invadida no limiar da sua intimidade por um desconhecido olhando e, o cúmulo, tocando suas partes. Aliviou-se ao tomar conhecimento que o Doutor Dinorah era um ancião. Rosalina guardava ingênua fé de que os velhos fossem isentos de possuir alguma tara.

Desconfortável numa sala de espera apinhada de mulheres talvez com pudores semelhantes aos seus, Rosalina puxou conversa com uma daquelas grávidas que lotavam o ambiente. Marcela inicialmente respondia de maneira monossilábica e distante as dúvidas de Rosalina acerca das qualidades e distanciamento profissional do Doutor Dinorah, preferindo concentrar-se em uma típica revista amarelada de consultórios. Contudo, a simpatia irradiada por Rosalina era tão envolvente que as duas saíram do consultório direto para uma lanchonete como se fossem amigas do tempo de colégio.

Marcela, a menos ingênua da dupla, foi quem montou o quebra-cabeça da traição entre os salgadinhos, doces e refrigerantes espalhados pela mesa que ocupavam. Um curto diálogo revelou que ambas possuíam um marido chamado Afonso, profissão vendedor, alguns dias da semana viajando. A prova incisiva estava em uma foto que Rosalina trazia consigo. Marcela viu a crápula figura do marido, sorriso de político em campanha de eleitoral costurado nas fuças, entre duas crianças rechonchudas, tendo Rosalina, como adorno da foto a completar o quadro da família feliz. Os que estavam dentro da lanchonete imaginaram se tratar de duas fugitivas de um hospício em razão dos berros e ataques histéricos em dueto. A dor conjunta, ao contrário de acirrar rivalidades, transformou a dupla de mulheres em cúmplices de uma vingança.

Afonsinho voltou contente do trabalho naquele tarde. Dirigia-se para o seu lar dividido com Rosalina após a estada em companhia de Marcela. Os dias haviam sido agradáveis junto ao filho e a mulher grávida, mas batia uma saudade dos afagos de Rosalina e da presença de seus outros moleques. Enfiou a chave na fechadura de casa pensando no quanto ele fora agraciado por ter duas mulheres tão encantadoras que haviam gerado filhos maravilhosos. Estranhou o silêncio da casa. Vasculhou os cômodos desertos enquanto chamava pela mulher. Chegou a imaginar que uma das crianças estivesse em alguma emergência de hospital. Assustado, procurou um telefone para tentar localizálos. Enquanto discava, percebeu uma série de fotografias espalhadas pela mesa onde estava o aparelho. Sua respiração travou, coração pulsou mais forte e de início seu cérebro pareceu não assimilar o que seus olhos captavam: uma seqüência de fotos mostrava Rosalina nua, acompanhada de um homem de corpo bem definido, dragão tatuado no bíceps. As expressões da mulher nas fotos denunciavam que ela estava se divertindo bastante em companhia daquele sujeito. Desesperadamente surpreendido, Afonsinho procurou nas fotos explicação para o que se sucedera. Em uma delas, presa por um clipe, a lacônica mensagem em um pedaço de papel: “Adeus”.

Procurou pela mulher e filhos na casa de diversos parentes. Ninguém conhecia o paradeiro de Rosalina. Alguns até se espantaram com a notícia de sua fuga, por julgar o casamento deles um exemplo de harmonia. No segundo dia, Afonsinho, transtornado, se embebedou. No terceiro, espantou-se com o seu próprio conformismo e decidiu voltar para a família que lhe restara.

Sentiu um calafrio invadir sua alma ao dar com a casa vazia. Mecanicamente, procurou por um embrulho de fotos. Lá estava ele, próximo ao aparelho de telefone. Diante da coincidência de fatos, compreendeu o que se passava. Ainda relutou em espiar as fotografias mas, não conseguindo evitar, testemunhou impressa em papel fotográfico a imensa barriga de Marcela acariciada pelo mesmo homem nu, cujo dragão tatuado aparecia de forma mais nítida, destacando uma obscena língua vermelha e bifurcada. Tal ocorrido lhe pareceu uma vingança mais dolorida que a primeira, porque Afonsinho nutria fé na castidade de uma grávida, não cogitando a possibilidade de prenhas terem desejos sexuais. Ele mesmo evitara Marcela durante o crescimento de sua barriga. Em prantos, leu o bilhete escrito em letras caprichadas da sua segunda mulher, preso a um clipe de forma idêntica ao encontrado na casa do outro extremo da rua. Mais prolixo do que o deixado por Rosalina, o recado compunha-se de apenas uma reveladora e sarcástica rima pobre: “Quem com duas mulheres decidiu viver, duplamente corno há de ser”.

Tecido Adiposo

Vibrou quando seu pai concordou em assinar a TV a cabo. Um ponto em seu quarto. 130 canais. O mundo em sua casa ao simples toque no controle remoto, Finalmente ela teria sua Babel eletrônica. No primeiro dia, Nandinha virou a noite assistindo TV. Uma cachaça. Viu até os canais em línguas que não podia compreender. Em semanas ficou obsedada, telesedada. Não saia da frente do aparelho, tinha como desafio assistir todo o entretenimento que o cabo proporcionasse. Papai e mamãe ficaram preocupados com o comportamento da filha.

Foi a mãe que de inicio notou o engordar de Nandinha. Uns dois ou três quilos. Lamentou o sedentarismo em que a filha se metera após a chegada da TV a cabo. Que fosse coisa passageira, desejou.

Mas a menina danou de engordar. Em dois dias não conseguia passar pela porta do quarto. Um médico veio examiná-la. Assustado, receitou moderadores e caminhadas. Após uma semana, foi necessária a derrubada da parede divisória entre o quarto e a sala, pois seu corpo tomou o cômodo. Pouco a pouco toda a casa foi sendo invadida pela gigantesca massa disforme em que a menina se transformara. A solução foi demolir a casa inteira para livrá-la de morrer espremida pelas paredes.

Livre das paredes, Nandinha em horas atingiu a altura de um prédio de quatro andares. Juntou a vizinhança para ver o circo de horrores encenado naquele quintal. Não demorou muito para um sujeito começar a vender refrigerantes e cervejas para os curiosos que assistiam Nandinha engordar, em questão de tempo outros ambulantes fizeram o mesmo e logo um comércio se formou em torno da adolescente. Depois chegaram os repórteres de TV e imprensa em geral. Ela sorriu e acenou para as câmeras, entendendo que agora era uma celebridade. A noite, o Brasil e o Mundo tomaram conhecimento via satélite do drama de Nandinha.

Seu corpo avançou sobre quarteirão, destruindo as casas vizinhas, tomando as ruas. Cientistas vieram de diversas partes do mundo estudar o fenômeno e não encontraram uma fórmula para estancar o crescimento da menina, mas alertaram que naquele ritmo, a obesidade de Nadinha em meses poderia tomar todo o planeta. A notícia causou pânico mundial. Milhares de pessoas migravam de suas casas que iam sendo engolidas pelo voraz crescer das gorduras da adolescente. Em contrapartida, religiosos de diversas seitas iam ao seu encontro tentar, por intermédio da fé, cessar o que os orgulhosos sábios não conseguiram. Fracassaram. Cogitou-se a vinda do Papa para benzer Nandinha, mas bancada evangélica no Congresso enciumada vetou a empreitada.

Os norte-americanos, Senhores de tudo, trataram de enviar um porta-aviões equipado com armas nucleares para a costa brasileira. Se preciso fosse bombardeariam Nandinha ao menor sinal da ameaça adiposa tomar direção do Hemisfério Norte. Associações de direitos humanos e estudantes organizaram passeatas em favor de Nandinha e o povo sem alternativas ficou a espera do seu destino: Ser tragado pela gordura de Nandinha ou o extermínio nuclear proposto pelo americanos. Nandinha, com a cabeça literalmente nas nuvens, a tudo assistia com um cândido sorriso.

Quando o planeta já se preparava para o pior o inesperado aconteceu. Nandinha arrotou. Como estava virada para o Oceano Atlântico, o eco do seu arroto foi testemunhado em algumas aldeias africanas. Alguns nativos saudaram aquele som como a voz dos deuses e dançaram em agradecimento.

O arroto fez com que o corpo de Nadinha começasse a murchar. De sua boca saiu um vendaval que durou três dias. O hálito de Nandinha espalhou um odor carniceiro por toda a cidade do Rio de Janeiro, até que a menina voltasse ao tamanho normal. Depois, a ela caiu em sono profundo. “Glória Deus”, gritaram alguns crentes, enquanto esotéricos faziam cerimônias em volta da menina também agradecendo às vibrações que acreditavam haver proporcionado o feliz desfecho do fenômeno. O Exército Americano recolheu suas ogivas. O que a imprensa batizou de “A Ameaça Adiposa” havia passado. Os cientistas gastaram semanas formulando teorias explicativas para o acontecido. Houve debates nas TV em horário nobre.

Nadinha dormiu por seis meses. Acordou como se tivesse despertado de um pesadelo. Percebeu que morava em outra casa. Mamãe e Papai a olhavam comovido. A menina esfregou os olhinhos. E perguntou:
— O que e está passando na TV?