25 de junho de 2011

Vovô Sobrado

Vovô Sobrado nem sempre foi vovô. Como todo mundo, embora fosse uma casa e não gente, ele nasceu criança. Já foi Sobradinho. Um jovem sobrado como muitas construções daquela rua no centro da cidade.
Cresceram juntas todas aquelas casinhas que, sem que desconfiassem seus moradores, tinham vida própria. Conversavam as casas entre si, trocando confidências sobre seus habitantes. Algumas se orgulhavam das pessoas a que nelas viviam, como o majestoso palacete do início da rua, moradia de um juiz de direito, ou o sobrado verde, vizinho ao do agora vovô, hospedagem de um importante delegado de polícia.
Vovô Sobrado abrigou muitas pessoas durante todos aqueles anos. Na juventude, morou nele a família de um comerciante que utilizava a parte debaixo do sobrado como armazém. Mais tarde, quando ainda era conhecido como Seu Sobrado, ele foi, durante muitos anos, um restaurante bastante frequentado nas redondezas. Foi nessa época que ele descobriu que as casas não ficavam “de pé” para sempre quando uma bela casinha amarela, levantada à sua frente, do outro lado da rua e já envelhecida pelo tempo, foi demolida. Seu Sobrado ficou triste com o desaparecimento de sua vizinha de frente. Era sua amiga e eles costumavam conversar bastante, lembrando dos velhos tempos quando ainda eram jovens.
O terreno onde vivia a bela casinha amarela ficou algum tempo vazio até o dia em que diversos operários lá apareceram. Eles cercaram o terreno com tapumes de madeira e começaram uma obra, num vai-e-vem de trabalhadores que mais parecia um exército de formigas em torno do formigueiro. Demorou um pouco, mas quando a obra terminou, moderno e gigantesco prédio surgiu atrás daqueles tapumes. Era bonito, imponente e... arrogante! Logo o grande prédio se achou o rei do pedaço. Afinal, ele era belo, jovem, cheio de vida. Seus vizinhos já estavam decadentes, como ele costumava dizer. Era época de progresso, de surgirem novos é modernos prédios como ele, “arranhando os céus” com a sua altura. Seu Sobrado ficou triste com a atitude do novo habitante da rua.
Pouco a pouco, as velhas casas da rua foram perdendo espaço, sendo demolidas para surgirem prédios no estilo do arrogante arranha-céu. Seu Sobrado ainda se mantinha na rua graças à freguesia do restaurante que dentro dele funcionava.  Terminou sendo a única construção antiga na rua. Apesar de já estar cercado por prédios jovens e esnobes, da parte dessas novas construções ainda tinha algum respeito. Foi neste período que ele passou a ser chamado de Vovô Sobrado. Os prédios novos pediam conselhos, ouviam velhas histórias sobre aquela rua. Vovô Sobrando tinha boa memória.
Acontece que, um belo dia, inauguraram um amplo restaurante no andar térreo de um daqueles modernos edifícios. A freguesia do restaurante do Vovô Sobrado foi, pouco a pouco, preferindo almoçar no novo local. Sem alternativas, o proprietário do restaurante teve que fechar as portas e Vovô Sobrado ficou sem serventia na rua, passando a ser uma casa vazia.
Colocaram uma placa escrita “aluga-se” na fachada de Vovô Sobrado, mas ninguém apareceu disposto a alugá-lo. Ele foi ficando triste e abandonado. Rachaduras começaram a aparecer em suas paredes, a pintura descascou, os vidros das janelas quebraram. Com o passar do tempo, Vovô Sobrado em nada lembrava o belo e bem cuidado prédio do passado. Alguns dos arranha-céus passaram a vê-lo com desprezo. Era um velho sem utilidade em volta deles, jovens e cheios de vida.
Até que um dia, chegaram alguns operários e cobriram o Vovô Sobrado com tapumes de madeira. “É o meu fim”, ele pensou. “Vão me demolir para construírem um moderno edifício”, lamentou.
Durante meses, ninguém viu o que acontecia com o Vovô Sobrado por detrás dos tapumes. Os jovens prédios já davam o velho sobrado como demolido. E então, aconteceu uma fantástica surpresa! Primeiro, um caminhão estacionou em frente ao vovô e vários carregadores desembarcaram inúmeras caixas e móveis, transportando-os para dentro da construção ainda escondida pelos tapumes de madeira. Passado alguns dias, os tapumes foram retirados e... Vovô Sobrado estava reformado! Belo, com pintura reluzente, e no alto uma placa onde estava escrita a palavra “Biblioteca”.
A inauguração da biblioteca marcou a história daquela rua. Até o governador compareceu! Vovô Sobrado transformou-se em fonte de saber daquela comunidade. Diariamente, centenas e adultos e, principalmente, crianças entravam sobrado adentro em busca de livros e conhecimento. Os modernos edifícios compreenderam que a quase centenária construção merecia todo o respeito pela história e importância que ela tinha, mesmo no mundo dos jovens. E assim, Vovô Sobrado pode mostrar, mesmo sendo um idoso, o quanto podia ser útil, através da sabedoria em forma de livros que o seu interior abrigava.
Classificado no Prêmio Sesc-Monteiro Lobato 2010