3 de setembro de 2010

O Centauro de Saramago

Conheceu a Nélida no salão de cabeleireiro. Fora fazer um corte a máquina e a gerente, uma felliniana de quase 100 quilos, a convocou para executar o serviço. Sentado na cadeira, observando-a através do espelho, Ignácio sentiu o célebre desconforto machista em ser atendido por um travesti. Suas mãos eram pesadas, mãos de homem, a despeito da tentativa de figura feminina que Nélida se esforçava em representar. Não fosse o leve azular da barba e a voz artificialmente colocada, por mulher passaria. Ele voltou para casa incomodado, mas reconhecendo que Nélida havia caprichado no corte.

Na segunda vez, já estavam um pouco mais íntimos e o desconforto diluíra. “Trabalha em quê?” perguntou Nélida enquanto manejava com maestria a máquina. “Professor de matemática” foi a lacônica resposta. Como estávamos na Quarta-feira de Cinzas, Ignácio ouviu atento e assombrado, o relato de Nélida para as outras cabeleireiras sobre suas aventuras no Baile Gay fantasiada de Coelhinha da Playboy. Voltou para casa curioso, imaginando Nélida dentro dos seus trajes carnavalescos.

Na terceira ida ao salão, encontrou um negro forte sentado onde já considerava o seu lugar. A felliniana chamou outra cabeleireira para dar um trato em sua cabeça semi- raspada e Ignácio, disfarçando a contrariedade, ficou bisbilhotando os movimentos de Nélida que, num frenesi entusiástico, esculpia na nuca do Apolo de Ébano a palavra “Mengo”. Voltou para casa platonicamente enciumado.

Em sua quarta visita ao salão, durante ritual do corte, Ignácio pediu Nélida em namoro. Seguiram para a casa do professor e tiveram sua primeira noite de amor.

Passaram a dividir uma quitinete em Copacabana em companhia de um gato angorá chamado Oscar que interpretava o papel de filho que nunca teriam. Viviam como marido e mulher, pois Ignácio não a desejava como homem e tão pouco Nélida prestava-se ao papel ativo. Só um detalhe atrapalhava a paz conjugal: os flácidos 11 centímetros de Nélida. Ignácio tinha verdadeira ojeriza ao falo da amada, mal conseguia encará-lo. Passaram muitas madrugadas de carinhos no escuro, com o membro de Nélida ocultado pelo negrume do quarto enquanto o travesti recebia Ignácio de bruços, escondendo a parte de sua anatomia embaraçosa ao seu amor.

Um dia, pousou nas mãos de Nélida um livro de contos de José Saramago. Não era dada a leituras, mas interessou-se pela história de um centauro caçado impiedosamente por um grupo de humanos. Narrava Saramago que a criatura mitológica sempre tivera o desejo de dormir deitado de costas, o que sua constituição, meio homem, meio eqüino, o impedia de realizar. Encurralado, o centauro queda-se por um desfiladeiro e tem seu corpo violentamente cortado ao meio por efeito de uma pedra pontiaguda. Em seus últimos momentos de vida, a porção humana do centauro caído de costas experimenta o prazer de sentir solo acariciando seu omoplatas. Emocionada, Nélida cerrou o livro e tomou uma decisão.

Foram quase dois anos de espera, mais seis meses de recuperação após a cirurgia. Dr. Euclides Pessoa, conhecido nos meios cirúrgico-científicos como “O Pitanguy das Xoxotas”, fizera um trabalho digno de figurar em qualquer galeria de arte, dada a perfeição em que construíra a vagina de Nélida. Então, tal qual o centauro de Saramago, o agora ex-travesti provou da emoção única de, omoplatas roçando os lençóis, receber um homem, seu homem, de frente pela primeira vez na vida e ambos, unidos e extasiados, gozarem os prazeres que um prosaico papai-e-mamãe só àquele casal poderia proporcionar.

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