28 de outubro de 2010

O Ser e o Nada

No interior do templo, o pastor ameaça com um inferno tingindo em cores monstruosas as ovelhas humanas que ousassem se desgarrar das virtudes cristãs. Jean-Paul Sartre, que a tudo assistia passivamente, incorpora-se na obreira mais próxima e, entre bufos e estrebuchos do seu cavalo-de-santo, sentencia.
— O inferno são os outros...

23 de outubro de 2010

México 70: A Copa que eu não vi

Será possível alguém sentir saudades daquilo que não vivenciou? Por mais estranho que pareça, eu sinto, pois sempre me lembro com nostalgia da Copa do Mundo que, com meros quatro anos de idade,  eu não vi.  Ele foi disputada  no México, 1970, quando onze homens vestiram a camisa amarela da seleção brasileira e juntos elevaram o futebol à categoria de obra de arte.

Esqueçam tudo o que ouviram falar do governo Médici, seus porões sangrentos e a utilização do futebol como massa de manobra para manter o povo alienado e em seu lugar. Ignorem milagres econômicos, Guerra do Vietnã ou o movimento hippie. Ponha um DVD da Copa de 70 em seu aparelho e foque-se apenas nas quatro linhas que demarcaram o campo de batalha do Estádio Jalisco, na cidade de Guadalajara. Naquele longínquo mês de junho, o “scratch canarinho” como era carinhosamente chamada a seleção, apresentou um espetáculo futebolístico nunca visto antes e quiçá impossível de ser reapresentado pois, a despeito do futebol haver mudando tanto em disciplina tática quanto nos aprimoramentos físico e técnico, as peças do xadrez eram outras, e de qualidade infinitamente superior ao que vemos hoje.

Para começar, havia um deus de ébano no esplendor de sua forma física, tecnicamente perfeito e amadurecido nos seus trinta anos de idade. Pelé, simplesmente o Rei, que conseguiu a façanha de ficar eternizado na Copa em que foi magistral não pelos gols assinalados, mas pelos perdidos. Veja, reveja e deslumbre-se com o seu chute do próprio campo contra a meta  adversária e o desespero do goleiro theco, ou a clássica cabeçada defendia pelo inglês Gordon Banks, jogada responsável pela fama do arqueiro da seleção inglesa por muitos anos, ou ainda a incrível, fantástica, esteticamente maravilhosa meia-lua sem tocar na bola contra um goleiro uruguaio de prosaico nome polonês. No México Pelé foi perfeito, um maestro acompanhado pelo spalla Tostão, talentoso meia do Cruzeiro que meses antes sofrera um grave descolamento de retina e, do inferno a redenção, brilhou em terras aztecas. Justamente no confronto mais difícil, contra o “English Team”, consagrado campeão do mundo quatro anos antes, Tostão deixou sua marca em uma jogada individual pelo lado esquerdo onde, após provocar um salseiro, passou a bola para Pelé que, com um simples toque para lado, deixou Jairzinho livre para decretar a magra, contudo heróica vitória por um a zero.

Como esquecer de Jairzinho, o Furação da Copa? Seis jogos, seis gols, façanha nunca antes alcançada, nosso camisa sete levou pânico as defesas adversárias com suas arrancadas mortíferas. Tivemos ainda Rivelino e sua patada atômica; Brito zagueiro raçudo, considerado o pulmão da copa; Carlos Alberto, nosso eterno capitão que perpetuou o gesto de beijar a taça Jules Rimet (que como dizia o samba-enredo “derreteram na maior cara-de-pau”); a juventude veterana de Clodoaldo, a organização tática e os lançamentos milimétricos de Gerson, o canhotinha de ouro; a classe de Piazza, a discrição de Félix e Everaldo.

Campanha sem igual, coroada com a brilhante exibição na final disputada na Cidade do México. Um 4 x 1 convincente contra a seleção italiana, tão diferente destas finais insossas que nos acostumamos a presenciar nas últimas Copas.

Parafraseio Pablo Neruda e confesso que não vivi o momento, não vi a maior seleção de futebol de todos os tempos mas, graças ao milagre tecnológico, este espetáculo está ao alcance de qualquer mortal ao custo de uma locação de um DVD. Aprecie sem moderação.

18 de outubro de 2010

A Filha da Capa

Gerusa, você viu esta pouca vergonha?
— Benza Deus! Olha como nossa filhinha ficou bonita na capa da revista!
— Bonita? Ela está peladona da Silva! Meu Deus, que vergonha! A gente cria uma filha com tanto carinho para ela acabar assim, como veio ao mundo em uma revista de tarados? Eu virei motivo de chacota lá no ponto de táxi, todos os colegas me apontaram. Apontavam para esta revista, para mim e diziam: “Olha como a filha do Adalberto é gostosa”. Tinham a safadeza no timbre da voz.
— Deixa de besteira, homem. Nossa filha agora é famosa.
— Eu imagino a fama dela. Sabia que quando ela veio com esta história de que iria morar fora pra ter “o seu espaço” era nisso que ia acabar.
— Acabar em quê?
— Nossa filha é uma perdida, Gerusa! Será que você não percebeu?
— Ninguém se perde mais, homem. Ela se achou, isto sim. Achou uma carreira...
— Nossa Senhora! Ela quando saiu daqui de casa não tinha estes peitões!
— Silicone, Adalberto.
— E quem pagou por isto?
— O padrinho dela. Um senhor que ajuda ela na carreira. Ele é o empresário.
— Nunca mais boto minha cara na rua...
— Relaxe, Adalberto. São só umas fotinhas. Hoje os tempos são outros.
— Sou do tempo em que umas costas nuas já provocava um escândalo. Não isto aqui. A gente quase consegue ver o interior da...  eu vou sair Gerusa! Vou comprar todas as revista da cidade! Não quero meu nome emporcalhado por uma safadeza destas!
— Vai comprar todas as revistas do Rio de Janeiro?
— E esta tatuagem indecente no traseiro? “Made in Brazil”. Quem iria tatuar um “Made in Brazil” nas ancas se não estivesse à venda?
— Você é muito careta, Adalberto. Estou tão orgulhosa da nossa filhinha...
— Jesus! E este “R” aqui na perseguida?
— Foi ideia minha.
— Sua? Que dizer que você sabia? Traído dentro de minha própria casa...
— Deixa eu te explicar, homem. Foi uma jogada de marketing.
— E desde quando você entende de marketing, mulher?
— Desde que vejo programa de fofocas na TV. Ela precisava depilar a... a perseguida para as fotos. Então eu sugeri que ela fizesse um “R” lá para, se perguntassem, ela dissesse que era uma homenagem ao namorado.
— E quem é este otário que esta namorando esta aprendiz de Messalina?
— Bonito este nome, Adalberto. Nossa filha podia usar como nome artístico. Não tem namorado, seu bocó. Fica o mistério de quem seria o “R”. Tem muito jogador de futebol que começa com a letra “R”.
— Não quero ouvir mais nada... Aliás, não quero também ver mais nada! Joga esta revista pecaminosa no lixo, Gerusa!
— Isto Nunca! Vou guardar de recordação. Minha filha agora é uma artista! Já vejo os próximos passos. Ela vai para o Bigue Bródi e depois... Adalberto... Adalberto, você tá bem? Meu Deus, você tá ficando roxo! Vou ligar para o seu cardiologista! Adalberto! Fala comigo, Adalberto!

3 de outubro de 2010

Sardas

O indicador doía por tanto acionar o teclado do telefone, mas sua busca ainda não findara. Necessitava de uma loira, cerca de vinte e cinco anos, pele branquinha e, importante: sardas. Sardas a salpicar o colo e as costas, feito ilhotas em um arquipélago de melanina. As sardas eram fundamentais. Outros detalhes eram secundários. Fernanda lhe revelara sua constelação de manchinhas no dia em que aparecera no escritório trajando um tomara-que-caia. Nunca soube ao certo se ficara obcecado pelo colo pigmentado de Fernanda ou se a ocasião tão somente apertara o gatilho da paixão.

Fernanda, colega de trabalho, mulher que Hélio julgava inconquistável devido a sua insignificância e nulidade como ser humano. Considerava-se um homem sem atrativos estéticos, financeiros, sujeito sem glórias, destituído de personalidade ou carisma. Um nada, um covarde. Um covarde que amava platonicamente.

Muitas garotas de programa interrompiam a ligação, creditando a Hélio taras inimagináveis, contudo, após exaustivas buscas, encontrou uma sardenta disposta a ser sua Fernanda. Chamava-se Amanda, certamente nome de guerra.

As portas do elevador abriram-se no quinto andar de um fétido prédio na Barata Ribeiro, antigo 200. Hélio deslizou pelo corredor cujas intermináveis portas lhe presentearam com a sensação de Teseu no labirinto. Diante da 512, acionou a campainha. Uma loira miúda, corpo camuflado por um roupão amarelo, atendeu. Não tinha cara ou trejeitos de prostituta, pelo menos assim concluiu Hélio que estereotipava aquelas profissionais.

Amanda convidou-lhe a entrar em uma quitinete microscópica onde mal cabiam a cama de casal e um armário de portas empenadas.  Sugeriu que Hélio ficasse “à vontade” e, enquanto zanzava pelo quarto tagarelando sem parar, deixou cair cinematograficamente o roupão, revelando um corpo alvo, cândido, quase pueril. Lá estavam as sardas tão ambicionadas por Hélio. Sardas de Fernanda. Era o suficiente.
A prostituta ajoelhou-se na cama ao lado de um Hélio que insistia em permanecer vestido. Desempenhado com maestria seu papel, ela abriu levemente as pernas, revelando o sexo rosadinho, depilado, combinado com a tonalidade dos mamilos.

—Gosta?

— Sim... Você tem um vestido tomara-que-caia?

— Quer uma fantasia, hein? Safado...

— Quero que você se fantasie de Fernanda.

Por algumas horas Hélio passeou de mãos dadas com Amanda, que se passava por Fernanda e levava na certidão o registro de Maria Cláudia. Andaram pela orla de Copacabana, tomaram sorvete num quiosque, viram o sol se pôr às costas da Ponta do Arpoador, visitaram a feira hippie. Amanda/Fernanda/Maria Cláudia estava encantadora em seu vestidinho. O homem realizou naquele fim de tarde, prelúdio de noite, o sonho de namorar seu simulacro de Fernanda, ainda que pagasse por isto.

Chegando à portaria do antigo 200, Hélio percebeu que não mais amava Fernanda, menosprezava o sexo rosáceo de Amanda e se apaixonara por Maria Cláudia.

Quebrou-se o encanto por uma mão estendida, cobrando o  acordado pelo programa. Pagou o prometido, virou as costas para a Amanda profissional do sexo sem sexo e sentiu a agulha da sussurrada voz debochando por detrás dos omoplatas.

— Tolo...

Ou..

Quebrou-se o encantamento ao acertar o serviço contratado. Hélio sacou do bolso a carteira para pagar o combinado programa de sexo sem sexo com sua imitação de Fernanda. A garota de programa, no entanto, recusou as notas que o homem lhe ofertava com um gesto de “deixa pra lá”. Já não era mais Fernanda e, após o encontro com aquele sujeito gentil e atencioso, resolvera despir-se da personagem Amanda. Inúmeras possibilidades abrilhantavam-se à sua frente.

— Aceita subir para um café? – Ela perguntou em ousadia fêmea, contudo despida de malícia profissional. Amanda desejava, Fernanda era quimera, Maria Cláudia amava.