26 de setembro de 2010

Sonho 02 - Copa, jornalismo e baião

Trabalho em uma redação de um jornal. A tarefa dos repórteres é assistir aos jogos da Copa do Mundo e fazer um resumo das partidas para o editor. Fico impressionado com um jornalista que apresenta o seu resumo no gênero blues. O editor me chama. Informa que eu serei o responsável pela cobertura da partida Dinamarca versus Paquistão. Dirijo-me para uma cabine onde passará o jogo. Penso em fazer uma cobertura utilizando um baião interpretado por Luiz Gonzaga. Desperto.

14 de setembro de 2010

O Menino e a Atiradeira

Era um bom menino, avesso às pequenas malvadezas tão comuns no universo infantil, mas queria ter uma atiradeira. Nunca pensou em matar passarinhos, judiar dos gatos, bater nos meninos menores, mas queria ter uma atiradeira, símbolo de status entre a gurizada do bairro, um rito de passagem, porta de entrada para o mundo dos garotos maiores. E ele desejava ser da turma dos maiores.

Diziam ser ele inteligente e observador, qualidades que amenizavam sua timidez, quase um bicho do mato. E sendo tímido, não se encorajara em pedir a outro menino para lhe fazer um estilingue. Inteligente e observador, estudou por semanas a construção daqueles meio-brinquedos, quase armas, a enfeitar as mãos dos moleques descalços quando invadiam o sítio fronteiriço à comunidade para caçar pardais e rolinhas.

Adquirindo segurança em seus planos, pôs mãos à obra. Cuidando de ocultar no esconderijo do seu quarto o projeto que certamente a mãe abominaria, o menino serrou a forquilha colhida de uma goiabeira até conquistar a forma do ipsílon característico do bodoque. Arrancou a casca com auxílio do seu canivete, presente do pai que há meses fora embora de casa, e o quarto inundou-se pelo cheiro da clorofila liberada pela operação. Lixou o artefato e uniu as pontas menores do vértice às tiras de câmara de pneu previamente cortadas, atando as extremidades livres a uma peça de couro retangular que alojaria a pedra a ser arremessada.

Trabalhou o menino com extrema habilidade na criação de sua atiradeira. Ele mesmo surpreendera-se com o talento manual hibernado dentro de si. Agitado pela novidade, experimentou uma, duas vezes o estilingue, esticando e soltando inúmeras vezes as alças elásticas, lançando ao longe obuses imaginários. Escondeu o brinquedo debaixo da cama e custou a ser visitado pelo sono naquela noite, fruto da ansiedade para usar de seu bodoque no dia seguinte.

Mal os galos cantaram, o menino já estava de pé. Era período de férias e ele podia assim gastar toda a manhã provando de seu novo brinquedo.

Sozinho, no campinho de futebol próximo a sua casa, treinou a pontaria em latas de leite enferrujadas, dispostas lado a lado, próximo a uns dos gols. Fazia com cuidado a mira, esticando as tiras, enquanto olhava concentrado dentro do vértice. Soltava a pedra com suavidade, sem mover o braço. Foi quando o menino viu um camaleão sair de seu esconderijo e subir em um pequeno corte do terreno atrás do gol. O bicho parecia se aquecer, ganhando vida ao banhar-se com os primeiros raios solares do dia.

Lentamente, para não afugentar o réptil, o menino abaixou-se e pegou uma pedra. Novamente de pé, apontou o estilingue em direção ao pequeno animal. O mundo pareceu estancar naquele momento, só existindo o caçador e sua presa, tal a concentração na qual o menino depositou o tiro que atingiu de modo preciso a cabeça do camaleão, arremessando-o por força do impacto para uma moita atrás do corte.

Tonificado pela adrenalina da ocasião, o menino ansioso vasculhou a moita e encontrou o camaleão agonizante. A pedrada esfacelara parte do crânio, carnes estavam expostas, um olho havia sido arrancado. A respiração do bicho se fazia ofegante, e o réptil movia apenas uma das patas traseiras.

A visão do animal às portas da morte o chocou. O remorso então lhe inundou alma, afogando a sanha assassina que minutos antes o fizera predador. De súbito, tomou asco pela atiradeira que tanto desejara e jogou-a no meio do mato. Pela primeira vez ele matara, e viu que fora ruim. Voltou para casa corroído pela culpa. Lágrimas umedeciam sua face. A mãe, assustada, perguntou o que ocorrera. Preferiu o silêncio. Trancou-se no quarto durante o resto do dia, pensamentos dominados pela imagem do camaleão atingido.
Quando o cansaço venceu e o sono o tomou, o menino foi perturbado durante toda a noite por sonhos maus, protagonizados pelo camaleão ferido.

Os galos novamente cantaram, anunciando a nova alvorada e o menino, nem bem despertara, correu para o local onde jazia o réptil. Nada encontrou. Vasculhou em torno e nem sinal do bicho. "Quem sabe ele sobreviveu"? - pensou o menino. Um rasgo de esperança assaltou seu coração e um sorriso brotou novamente em sua face cuja tristeza havia se esculpido por quase 24 horas. Aquele sorriso juvenil transformou-se em uma risada gostosa, aplacando o remorso pelo mau ato de véspera, atestando em seu íntimo que, apesar do acontecido, ele ainda era um bom menino.

O menino nunca soube que um grupo de garotos maiores, daqueles que ele admirava, havia se reunido ali para jogarem bola enquanto ele estivera trancado em casa, remoendo-se em culpa. Divertiram-se atirando o corpo do cameleão em um riacho próximo ao campinho para ver os peixes devorá-lo. Quanto à atiradeira, também encontrada, serviu de motivo para contenda entre eles. O maior dos meninos, e mais forte, vencera a batalha, e era agora dono de um estilingue de fazer inveja. Deus escreve certo por linhas tortas.

Menção Honrosa no 7º Concurso de Contos Luis Jardim - 2009

10 de setembro de 2010

8 de setembro de 2010

Receita de Pizza Margherita

  •  Pegue o telefone.
  •  Digite o número do seu restaurante predileto.
  •  Escolha o tamanho (brotinho, média, grande, familia ou extra-large).
  •  Informe o endereço para a entrega.
  •  Aguarde alguns minutos.
  •  Atenda o interfone e libere a entrada o entregador.
  •  Pague e não esqueça da gorjeta.
Bom apetite!

3 de setembro de 2010

O Centauro de Saramago

Conheceu a Nélida no salão de cabeleireiro. Fora fazer um corte a máquina e a gerente, uma felliniana de quase 100 quilos, a convocou para executar o serviço. Sentado na cadeira, observando-a através do espelho, Ignácio sentiu o célebre desconforto machista em ser atendido por um travesti. Suas mãos eram pesadas, mãos de homem, a despeito da tentativa de figura feminina que Nélida se esforçava em representar. Não fosse o leve azular da barba e a voz artificialmente colocada, por mulher passaria. Ele voltou para casa incomodado, mas reconhecendo que Nélida havia caprichado no corte.

Na segunda vez, já estavam um pouco mais íntimos e o desconforto diluíra. “Trabalha em quê?” perguntou Nélida enquanto manejava com maestria a máquina. “Professor de matemática” foi a lacônica resposta. Como estávamos na Quarta-feira de Cinzas, Ignácio ouviu atento e assombrado, o relato de Nélida para as outras cabeleireiras sobre suas aventuras no Baile Gay fantasiada de Coelhinha da Playboy. Voltou para casa curioso, imaginando Nélida dentro dos seus trajes carnavalescos.

Na terceira ida ao salão, encontrou um negro forte sentado onde já considerava o seu lugar. A felliniana chamou outra cabeleireira para dar um trato em sua cabeça semi- raspada e Ignácio, disfarçando a contrariedade, ficou bisbilhotando os movimentos de Nélida que, num frenesi entusiástico, esculpia na nuca do Apolo de Ébano a palavra “Mengo”. Voltou para casa platonicamente enciumado.

Em sua quarta visita ao salão, durante ritual do corte, Ignácio pediu Nélida em namoro. Seguiram para a casa do professor e tiveram sua primeira noite de amor.

Passaram a dividir uma quitinete em Copacabana em companhia de um gato angorá chamado Oscar que interpretava o papel de filho que nunca teriam. Viviam como marido e mulher, pois Ignácio não a desejava como homem e tão pouco Nélida prestava-se ao papel ativo. Só um detalhe atrapalhava a paz conjugal: os flácidos 11 centímetros de Nélida. Ignácio tinha verdadeira ojeriza ao falo da amada, mal conseguia encará-lo. Passaram muitas madrugadas de carinhos no escuro, com o membro de Nélida ocultado pelo negrume do quarto enquanto o travesti recebia Ignácio de bruços, escondendo a parte de sua anatomia embaraçosa ao seu amor.

Um dia, pousou nas mãos de Nélida um livro de contos de José Saramago. Não era dada a leituras, mas interessou-se pela história de um centauro caçado impiedosamente por um grupo de humanos. Narrava Saramago que a criatura mitológica sempre tivera o desejo de dormir deitado de costas, o que sua constituição, meio homem, meio eqüino, o impedia de realizar. Encurralado, o centauro queda-se por um desfiladeiro e tem seu corpo violentamente cortado ao meio por efeito de uma pedra pontiaguda. Em seus últimos momentos de vida, a porção humana do centauro caído de costas experimenta o prazer de sentir solo acariciando seu omoplatas. Emocionada, Nélida cerrou o livro e tomou uma decisão.

Foram quase dois anos de espera, mais seis meses de recuperação após a cirurgia. Dr. Euclides Pessoa, conhecido nos meios cirúrgico-científicos como “O Pitanguy das Xoxotas”, fizera um trabalho digno de figurar em qualquer galeria de arte, dada a perfeição em que construíra a vagina de Nélida. Então, tal qual o centauro de Saramago, o agora ex-travesti provou da emoção única de, omoplatas roçando os lençóis, receber um homem, seu homem, de frente pela primeira vez na vida e ambos, unidos e extasiados, gozarem os prazeres que um prosaico papai-e-mamãe só àquele casal poderia proporcionar.