30 de dezembro de 2010

Ecos de um Réveillon

Os sons característicos de uma festa dominavam o ambiente. Vozes incompreensíveis se perdiam no meio dos convidados se confundido com a música ao fundo, baixa como rezava as regras da etiqueta. “Música alta era coisa de pobre”, costumava repetir Jonas. Aquele era o primeiro réveillon que Telma e o esposo promoviam em seu apartamento recentemente adquirido em Copacabana, rua secundária, onde, da janela, pescoço esticado e um pouco de boa vontade, podia-se contemplar um canto do mar.
Família e alguns amigos íntimos foram convidados para a recepção. À meia-noite, todos desceriam a praia para assistirem a queima de fogos. Telma se multiplicava para agradar aos convidados enquanto Jonas entretinha um bando de homens segurando copos de whisky nas mãos. Telma, enquanto observava o marido, pensou no quanto eles haviam progredido nos últimos anos. E se não eram abastados, aos menos levavam vida confortável. Entretanto, a constrangia o profundo desprezo com que Jonas, aprendiz de rico, se referia aos mais pobres, atitude que fazia questão de não ocultar.
— Bando de gente sem fibra, que não tem ganas de vencer na vida. Ficam lá, nos seus empreguinhos de merda. E estes que dão pra mendigar? Trabalho tem demais. O que falta é coragem de meter as caras. Neguinho quer mais é uma esmolinha, batente que é bom nada – discursava Jonas para seus convidados.
Alguns concordavam com leves acentos positivos de cabeça. Outros procuravam disfarçar o cortante incômodo daquelas palavras.
Ocupada em suas tarefas de anfitriã, por um momento Telma perdeu de vista o marido, ocultado no meio dos convidados. Queria lhe alertar que já estava quase na hora de todos descerem. Distribuindo sorrisos a esmo, procurou pelo esposo em alguns cômodos da residência. Foi encontrá-lo ao telefone no quarto do casal, entre sussurros.
— Hoje não vai dar, meu bem...não, não...claro que eu amo! Mas amanhã eu dou uma escapada. Bota aquela camisola... é... aquela mesma... Tá bom... Um beijo nesta boquinha...
Afastou-se do umbral da porta antes que Jonas a descobrisse. As pernas bambeavam, os lábios tremiam. O marido tinha uma amante. E o calhorda ainda escolhia as camisolas dela! Procurou dominar-se do choque. Precisava evitar um escândalo. A casa estava apinhada de familiares. Seus pais, a mãe de Jonas, viúva do General Passos Filho, todos exibindo a artificial felicidade de final de ano. Trancou-se no banheiro e, sentada no vaso sanitário, destilou seu solitário ódio ao marido traidor. Engoliu o choro, olhou-se no espelho, retocou a maquiagem, e voltou para a festa.
Sentia-se a única infeliz em torno do turbilhão de rostos congestionados pela alegria iluminada pelos fogos que pipocavam no céu. No meio da areia recebeu mecanicamente os votos de feliz ano novo dos casais amigos. Jonas largou um beijo estalado em sua face. Neste momento, Telma pensou em Judas.
Caminhando de volta para casa, no meio da multidão ela tinha os pensamentos perdidos. Jonas continuava a vomitar seu desprezo pelos miseráveis.
— Todo dia deveria ser réveillon em Copacabana. Isto aqui tá pra turista ver! Limparam o bairro dos mendigos. Livraram-se da escória, dona Matilde.
A mãe de Telma riu de modo forçado.
No dia seguinte, Jonas inventou uma desculpa qualquer e foi encontrar a amante. Assim que se viu sozinha, Telma pegou o carro e saiu sem destino por uma cidade deserta de gente em virtude do feriado. Cruzou a zona sul e no Centro da Cidade, entrou em ruas decadentes. Naquele dia, entregou-se a todo o tipo de homem que atravessou o seu caminho. Não escolheu raça ou tipo físico, mas fez questão de trair Jonas com os personagens das camadas mais baixas da sociedade carioca. Telma conheceu os mais sórdidos hotéis de encontros do Centro do Rio. Fornicou em sobrados abandonados. Até dentro de banheiros fedorentos de botequins ela copulou. Encontrou-se com mendigos, cafetões, malandros de rua, bandidos, michês, gente desocupada, gente que trabalhava, vigias de edifícios, garçons que voltavam de seus restaurantes, lixeiros, motoristas de ônibus, taxistas, guardas de trânsito, flanelinhas. O 1º de janeiro daquele ano ficou conhecido nas redondezas como o dia em que uma riquinha enlouquecida alegrou sexualmente os desvalidos do Centro.
Chegou em casa junto com as primeiras horas da noite. Jonas ainda não voltara. Despiu-se de suas roupas suadas pela aventura, meteu-se debaixo do chuveiro e deixou a água morna envolver seu corpo cansado da batalha. Durante o banho, chorou pela primeira vez desde que soubera da traição. Depois, riu. Riu muito. Gargalhou até engasgar-se. Risos entrecortados por espasmos.
Nove meses depois, Telma deu a luz a um menino. Sabe-se lá filho de quem. A gravidez modificara Jonas. Até a amante ele largou. Na maternidade, era a alegria em forma de pai. Vendo o marido com a criança em seus braços, Telma deixou escapar um sorriso malicioso. Um doce sorriso de vingança, ainda que saboreada apenas no seu íntimo.

19 de dezembro de 2010

Dois Natais

Mais um natal se avizinhando em nossas vidas. Alguns foram ótimos, outros nem tanto, todos, entretanto deixando uma pequenina marca em nossas existências. Época de comprar presentes e, sobretudo de ganhar, ganhar, ganhar! Tá certo, o natal se transformou numa data consumista, onde uma reflexão sobre quem é e quais foram os propósitos do aniversariante enquanto esteve entre nós ficam para segundo plano, contudo, curto o natal e sua atmosfera de solidariedade envolvendo boa parte da raça humana neste dias que antecedem a data. Sociologismos à parte, dois natais marcaram especialmente minhas lembranças do tempo de criança. 

O primeiro natal do qual minha já quarentona memória consegue buscar foi também a primeira noite em que eu me lembro de ter passado acordado, coisa audaciosa para quem contava apenas seis ou sete anos de idade. Nesta noite, ganhei de presente um fusca de corrida movido à corda e uma ambulância cujo controle remoto funcionava ligado ao veículo através de um fio. Brinquedos paleozóicos em comparação ao que encontramos atualmente nas lojas e sites especializados. Todavia, o que mais me encantou naquela data, sendo o responsável direto pela minha insônia natalina, foi um livro de capa dura, com dimensões de um volume de enciclopédia, onde passeavam impressas as primeiras histórias em quadrinhos de alguns dos mais famosos personagens de Walt Disney. Varei a madrugada no meu quarto, sem que Morfeu me sequestrasse, sendo cúmplice das aventuras inaugurais do Mickey, Pateta, Tio Patinhas, Peninha, Pato Donald, Gastão, Huginho, Zezinho e Luizinho. Quando a fome me assaltava, ia à ponta dos pés até a sala e servia-me de castanhas, avelãs e frutas sobreviventes da ceia. 

Outro natal inesquecível ocorreu por volta dos meus dez anos de idade. Eu queira por demais ganhar uma mesa de futebol de botões. Minha mãe comprou a tal mesa e a escondeu atrás do armário do seu quarto. Desconfiado, passei dias indo sorrateiramente ao esconderijo e, sem que ninguém percebesse, com a ponta dos dedos furava o papel pardo que a embrulhava aquele retângulo ocultado pelo móvel, procurando indícios de que ali houvesse uma mesa. Para o meu desespero, a mesa que minha mãe comprara não era verde e sim na cor marrom do compensado. Picotei o embrulho por dias a fio, como uma cerimônia, uma novena, só obtendo a certeza de que eu ganharia a minha mesa de botões quando avistei o quarto de circulo que demarca a área de escanteio do campo de futebol através de um dos furinhos no papel de minha autoria. Na noite de Véspera do Natal eu fingia nada saber e, próximo à meia-noite, mamãe insistiu para que eu fosse desejar um Feliz Natal a um coleguinha do conjunto residencial onde eu morava. Claro que pelo adiantado da hora não havia amiguinho algum na área do prédio. Quando retornei, estavam todos com cara de que nada sabiam e encostada na parede minha mesa de futebol, com dois times de botões completos. Papai Noel havia passado e deixado um presente para mim, afirmavam os adultos. Não me lembro de haver um dia acreditado no bom velhinho e só muito tempo depois contei a minha mãe sobre as minhas excursões pré-natalinas atrás do seu armário. 

Natais felizes, de uma época mais romântica, que temo estar se perdendo.

12 de dezembro de 2010

Pequeno Conto Nada Natalino

Foi contratado para ser o Papai Noel de uma família classe média. Animaria a criançada surgindo da chaminé, gritando “ho, ho, ho!” e distribuindo os presentes, em geral lembrancinhas, bem ao espírito mesquinho dos natais de hoje em dia. Como estava na de pior, aceitou.

Na véspera de natal, roupa vermelha, barba postiça e saco nas costas, lá se foi ele em direção a casa combinada. Mas anotou o endereço errado e desceu pela chaminé da casa ao lado. Estava  vazia. Papai Noel foi seduzido pelos eletrodomésticos que decoravam a casa. Dariam uns bons tostões na mão de um receptador que ele conhecia. Esvaziou o saco de presentes, encheu-os com o que pode carregar. Teria um natal muito mais sortido do que o último. Não esqueceu de levar um ursinho de pelúcia para a filha e um carro de controle remoto para o moleque, seu xodó. Corroído pelo remorso, mas vencido pela tentação que o consumismo da data impunha, deixou os presentes para os que estavam ausentes, acompanhados por um bilhete. “Papai Noel esteve aqui. Feliz Natal!”

As crianças da casa ao lado deixaram de acreditar em Papai Noel,  que os decepcionou, esquecendo-se deles que foram bonzinhos durante todo o ano. A menorzinha jurou que tinha visto o Bom Velhinho no telhado dos vizinhos. Papai Noel recebeu nota zero em comportamento naquele natal.

7 de dezembro de 2010

Jesus de Copacabana

    


Ernestina, sentimentos escravizados pela devoção ao cristianismo, com olhos marejados de lágrimas rogou a irmã.

— Pelo amor de Deus! O menino-jesus não!

— E como vamos pagar a conta de luz que vence amanhã, mana? Com a sua fé no bonequinho?

Esta contenda vinha de anos. As dificuldades financeiras que as duas irmãs solteironas passavam as obrigavam, vez por outra, a se desfazerem das relíquias que a família acumulara durante décadas e agora dominavam os espaços do minúsculo conjugado alugado em Copacabana.

Desfizeram-se da prataria, bibelôs de louça, conjuntos de porcelana, até mesmo a cristaleira, herança da avó materna. Ernestina recebia estas perdas sem dizer um “ai”. Tal qual uma santa martirizada, aceitava o destino dado às peças que a irmã se desfazia para obter uns trocados. Mas deu para reclamar quando Raimunda decidiu vender um presépio com figuras em biscuit que todos os natais decorava um canto do conjugado e havia chegado ao Brasil no princípio do século XX por intermédio dos seus ancestrais portugueses. “Não serve pra nada, só ocupa espaço”, costumava dizer a mais pragmática das irmãs. Ernestina abominava a ideia de vender imagens religiosas. Para ela, temente a deus até as entranhas, aquilo tinha cheiro de sacrilégio, além de uma afronta à memória dos seus antepassados.

Inicialmente, Raimunda sacrificou os animais do presépio. Em seguida, os reis magos, vendidos em lote único a Agemiro Caldas, um antiquário da Rua Barata Ribeiro. Os olhos do homem reluziam em ganância após cada telefonema de Raimunda. O antiquário já possuía até um comprador para o presépio, mas o problema em ele não ter em mãos todo o conjunto de peças. Aquelas imagens chegando em doses homeopáticas o irritavam profundamente. Podia fazer uma oferta pelo que sobrara, Maria, José, o menino e a manjedoura, porém, temia que a as irmãs julgassem baixa a sua proposta e todo o plano viesse por água abaixo. Agemiro Caldas assim, violentando sua cobiça, tentava exercer as virtudes da paciência e esperava.

Não precisou esperar muito para se apossar do casal bíblico. Uma dívida com o açougue obrigou Raimunda a vender os pais do Cristo. Agemiro Caldas voltou saltitante para a loja. Desembrulhou os dois personagens e os colocou na prateleira onde estavam as outras peças do presépio estrategicamente arrumadas, vaquinhas, cordeirinhos, um jumento e os três reis magos. Um espaço vazio, no centro da cena, esperava pelo menino-jesus. “Agora só falta o garoto”, ruminou sorridente o comerciante.

Meses depois, o dia tão aguardado chegou. Agemiro Caldas, após um telefonema, bateu a porta do apartamento das irmãs e encontrou nelas resquícios de que ali houvera uma discussão. Ernestina fungando, Raimunda com cara de poucos amigos. Deduziu que o clima entre as irmãs pesara em virtude da venda do menino-jesus.

— Bem... – disse sentando sem esperar convite – vamos ao que interessa. Dou 80 reais pela peça.

— De jeito nenhum! – rosnou Raimunda. Ernestina apenas soluçava.

— Os tempos estão difíceis, tenho tido poucas vendas – desculpou-se.

— Trezentos reais ou Jesus não sai desta casa!

— Trezentos?!

— Só o menino. Sem a manjedoura.

— Caramba!

Negociaram durante meia hora e fecharam em 200 reais, manjedoura inclusa. A necessidade em pagar a conta de luz derrotara Raimunda. O antiquário deixou o apartamento com o pequeno Jesus metido dentro de um saco de supermercado, alegre como um porco na lama. No quitinete das irmãs, ficou um surdo ressentimento de Ernestina em relação a Raimunda.

Depois deste episódio, Ernestina adoeceu. Começou com uma tosse seca que não a largava. Em seguida, perdeu peso e disposição para o trabalho. Acabou na cama, voz fraca, mãos trêmulas. Raimunda gastou os 200 reais do menino-jesus e mais um pouco com remédios e médicos, mas Ernestina não melhorava. Entrevada na cama, um fiapo de voz na garganta, Ernestina se penitenciava à irmã:

— Estou sofrendo porque vendi Jesus. Sou uma Judas.

Vendo que a irmã só piorava e se convencendo de que a venda do menino-jesus fora realmente a causadora daquela doença, Raimunda telefonou para o antiquário tentando reaver a peça. Agemiro Caldas, sabedor do estado de saúde de Ernestina e desejoso em tirar vantagem da situação, jogou duro:

— Lamento, dona Raimunda. Estou cobrando 600 reais.

— Pelo Presépio? – espantou-se.

— Pelo menino.

Não adiantaram as súplicas de Raimunda nem a alegada doença de Ernestina. Agemiro Caldas argumentou que não conseguira vender o presépio, que o comprador roera a corda na hora de fechar negócio e que ele tinha que reaver de uma forma ou de outra o dinheiro empatado naquelas peças e que aquele era o seu negócio: comprar barato e vender caro. Até frases de economistas famosos ele citou para justificar sua usura. Raimunda desligou o telefone sem se despedir do ganancioso. Olhou para a irmã, moribunda e sendo consumida pela paixão por um ídolo de biscuit e, entrementes, tomou sua decisão.

O pequeno antiquário localizado na Rua Barata Ribeiro, esquina com a Paula Freitas, já estava fechando as portas quando dois pivetes invadiram o estabelecimento. Agemiro Caldas, que por avareza não possuía empregados, estava sozinho. Apesar de não reagir, levou uma estocada na perna esquerda. Aos policiais um trêmulo comerciante, perna enfaixada em gaze avermelhada pelo sangue, relatou que os pequenos assaltantes haviam roubado apenas peças miúdas, mas algumas de alto valor no mercado, entre elas, peças de aparelhos da Companhia das Índias e figuras de um presépio de biscuit.

Na Praça do Lido, ás onze horas do noite, sob um calor incomum para um outono, deu-se o insólito encontro.

— Trouxeram?

— Tá aqui, dona – disse um dos meninos, abrindo o saco de estopa onde estava o produto do assalto. 

Raimunda procurou afoitamente pelo Jesus de Biscuit. Um sorriso iluminou seu rosto quando achou o que procurava. Lá estava ele, liliputiano, olhar cândido e barroco, branquinho feito cera, cabelos loiros pintados em tinta dourada. Apertou a imagem no peito e perguntou.

— Deram a facada que eu mandei?

— Na perna, como a senhora mandou. O coroa ficou bolado – falou, às risadas, o menor dos dois 

— Podem ficar com o resto das peças e tá aqui os 50 reais combinados. Agora se mandem. Eu nunca vi vocês na minha vida, entenderam?

— Deixa com a gente, dona.

Mal chegou ao conjugado, Raimunda foi ao encontro da irmã. Ernestina jazia na cama. Tinha feições alvas como um zumbi de filme B. Um hálito de morte empestava o local . A irmã entregou a ela o menino-jesus. Ela segurou com força a imagem em uma das mãos. Seus olhos se encheram de lágrimas. Encarou a figura tomada pela emoção. Ofegante, tirou do peito suas últimas forças e falou.

— Agora eu posso ir em paz.

O enterro foi concorrido. Não se sabia que Ernestina conhecia tanta gente. Capela lotada, parecia que todos os velhinhos de Copacabana vieram se despedir da anciã. Havia muitas velas, pouco choro e uma coroa de flores. Entre os presentes, Agemiro Caldas, mancando em virtude da facada, contemplou o corpo de Ernestina no caixão. Raimunda suspirou aliviada depois que o antiquário se afastou sem perceber que a defunta segurava, fechada em uma das mãos, o menino-jesus de biscuit.


1º lugar no XXXIII Concurso Literário Felippe D'Oliveira - 2010 

2 de dezembro de 2010

A Professora de Caligrafia


As letras saiam desenhadas em nanquim, faceiras, estilisticamente formosas, espalhadas com elegância pelo envelope. Cada convite de casamento seria endereçado à mão graças ao artesanal trabalho de Gertrudes. “Caligrafia é a arte não da boa escrita, mas da bela escrita!” - costumava exclamar em relação ao seu ofício enquanto manejava com perícia o bico de pena.


Finalizou mais um envelope da encomenda de trezentos. Um sorriso de indisfarçável orgulho com a própria obra escapou dos lábios. Quando não estava ocupada em dar forma aos anúncios das bodas de gente em sua maioria desconhecida, Gertrudes ministrava aulas de caligrafia, tentando tornar legíveis os garranchos produzidos por jovens imberbes, donos de uma escrita estragada pelas intermináveis horas em frente à tela de um computador. Ensinado, a professora lamentava a quase nula preocupação da juventude em escrever direito. Era do tempo da “letra de moça”, uma qualidade bem vista na sociedade.

“Sou uma peça de museu...” - pensou enquanto finalizava mais um envelope. Fechou o rosto. “Preocupo-me com coisas sem a menor importância hoje em dia”. Já não era mais um pensamento e sim um murmúrio a serpentear pelos cômodos do pequeno apartamento em um conjunto residencial financiado pelo BNH e comprado à custa de inúmeras noites em claro, desenhando letras nas mais diversas encomendas. E não eram só convites. Cardápios, certificados, diplomas, logomarcas e monogramas. O computador quase extinguira sua profissão. Tudo já saia pronto daquele cérebro eletrônico. Gertrudes nutria asco por computadores.
A campainha soou, trazendo-a de volta à realidade. Sobressaltou-se numa ânsia freada. Gertrudes era uma mulher contida, não convinha extrapolar sentimentos, ainda mais na sua idade. Atrás da porta certamente estaria o Teixeira. Familiarizara-se com os três toques breves da campainha, inconfundíveis, sua “impressão digital” pré-anunciada. Estranhou que ele não houvesse ligado antes, sempre telefonava. “Quisera lhe fazer uma surpresa? Teria vindo terminar o relacionamento?”. Suspirou.

Gertrudes abriu a porta e sorriu de modo incerto para o amante. Ele beijou-a na testa como fazia há cinco anos. Entrementes, colocou a maleta na mesinha de centro. A mesma maleta de cinco anos atrás, depositada na mesma mesinha, mesmo beijo na testa, tudo sempre igual. Teixeira sentou-se no sofá. “Agora ele vai bufar, dizer que está ficando velho e pedir um copo d’água.” - pensou a professora munida de desconsolo no olhar.

— Filha, pegue um copo d’água para mim. Estou ficando velho para suportar este calor – disse o amante entre bufos.

Ela voltou da cozinha com o aguardado copo de água nas mãos, ofertando-o ao amante que o sorveu em um único gole, estalando os dentes em resposta prazerosa. Gertrudes odiava aquele comportamento. Às vezes se perguntava por qual motivo ainda estava atada a um homem sem modos e, pior das heresias, casado. Inventou uma desculpa qualquer e foi ao quarto onde, sentada em frente à penteadeira, desfez o coque. Alguns fios de cabelos brancos teimavam em desfilar nas pontas das raízes. Andava desleixada ultimamente. Por quanto tempo Teixeira ainda a desejaria? Dois, três anos antes que o seu corpo já sem atrativos murchasse de vez?  Tentou maquiar-se da melhor maneira possível, no intuito de se tornar atraente para o amante em visita não programada.

Teixeira penetrou no aposento sem pedir licença. Através do espelho da penteadeira, Gertrudes observou a audácia daquele homem, senhor de um castelo que não lhe pertencia, crente em possuir prerrogativas de mando em razão de aplacar, vez por outra, os desejos de uma anacrônica professora de caligrafia passada dos sessenta. Ele a abraçou pelas costas. Um cheiro de cigarro e gel de cabelo agrediu-lhe as narinas, mas o contato do amante em seu corpo, a troca de calores, o desejo em ter-se nos seus braços peludos para um outono de amores que já se anunciava fez Gertrudes ceder. Deixou-se levar para a cama.

Após terem apagado a mútua chama dos prazeres, Teixeira disse estar com vontade de comer bolo de laranja. Tal pretensão era novidade para Gertrudes. Em geral, ele virava de lado e, no aconchego dos lençóis que ela zelava em manter alvos para recebê-lo, desmaiava em sono profundo feito guerreiro repousando depois de feroz batalha.

— Sabe fazer? - Perguntou Teixeira, mãos acariciando as costas nuas da professora cujas sardas brotavam, dia após dia, marcando a pele, anunciado o seu envelhecer.

Em resposta, ela levantou da cama e vestiu um roupão. Leve arfar indignado emanando das narinas. “Teixeira quer bolo de laranja. Que pedisse a maldita esposa!” - ruminou enquanto lavava as mãos contaminadas pelos fluídos do ato consumado que ainda os unia.

Na cozinha, Gertrudes catou os ingredientes. Faltava a essência de laranja. Descobriu uma de baunilha, com prazo de validade próximo do vencimento. “Serve.” - concluiu. Gastou poucos minutos descascando as laranjas e outros tantos batendo a mistura no liquidificador, preocupada com os convites que dormitavam à sua espera na escrivaninha. Da sala, os rosnados de Teixeira e o cheiro do tabaco delatavam a quase nula presença do amante. Ouvia-se ainda o burburinho de vozes que o televisor regurgitava. Ela suspirou e procurou dedicar-se ao preparo do bolo. À medida que a massa ganhava forma, Gertrudes foi tomada por um sentimento de entusiasmo por sua criação culinária. Até que não era de todo ruim poder cozinhar para o seu homem. Ali mesmo, nas redondezas, havia várias mulheres à sua semelhança, mas carentes até mesmo de um Teixeira cheirando a sarro de cigarro e gomalina. Ao menos nisso era uma sortuda: tinha alguém, ainda que pela metade. Com tais pensamentos girando na mente, o primeiro sorriso honesto germinou dos lábios da professora de caligrafia desde que o amante tocara a campainha naquela tarde. Deixou de lado as inquietações acerca do trabalho acumulado na escrivaninha.

Em três quartos de hora o bolo estava pronto. Substituídos pela fragrância de laranja que a iguaria emanava, já não eram os cheiros de cigarro e gel que impregnavam o apartamento. Gertrudes se permitiu até uma centelha de felicidade enquanto contemplava o Teixeira mastigar com entusiasmo a fatia por ela servida. Comia diante de TV, prato pousado na mesinha de centro e, entre um e outro intervalo comercial, pedia novo pedaço, não se esquecendo de elogiar o talento da professora para os assados.

 E assim o fim de tarde se espreitou pela janela da sala do apartamento de Gertrudes, trazendo consigo os primeiros sinais da noite. Teixeira, alegando ter que partir, levantou-se e foi ao banheiro. Urinou ruidosamente. Ela detestava aquele barulho de urina em contato com a água do vaso sanitário. O amante gemeu, bufou mais uma vez e deixou o banheiro abotoando as calças, afivelando o cinto.
Foi então, no momento em ela ainda cogitava se o amante lavara ao menos as mãos, que a diminuta esperança de num futuro tê-lo por inteiro ganhou um fim, pois Teixeira, saciado em luxúrias e vontades gastronômicas, ordenou-lhe enquanto vestia o paletó:

— Filha, embrulha o que sobrou do bolo. Carmela adora bolo de laranja.

Nem mesmo uma bofetada magoando sua face teria causado maior humilhação à professora. Ela, mulher lutadora, que gastara a juventude rabiscando letrinhas em convites, diplomas e envelopes para conquistar um apartamento popular num subúrbio da cidade, fora relegada a quituteira da esposa do amante. Lágrimas ameaçaram rolar de seus olhos, mas Gertrudes as estancou. Ela era uma rocha. Não demonstraria fraqueza diante do responsável pelo seu desgosto. Fungou para que a voz não saísse modulada pelo choro abortado e perguntou:

— Carmela não vai desconfiar se você aparecer em casa com um bolo pela metade?
Teixeira desdenhou:

— Que nada! Eu digo que foi um resto de lanche que o pessoal do escritório comprou na padaria ao lado. Embrulha logo, ô Gertrudes, que eu já estou atrasado!

A professora espartanamente recolheu o prato de bolo e carregou-o para a cozinha. Do interior de um armário sacou um rolo de papel laminado para fazer o embrulho. Nunca o mundo lhe pareceu tão injusto. “Quituteira da esposa do amante! Quituteira da esposa do Teixeira!”. Tais palavras davam piruetas dentro do seu cérebro, envenenado seus sentimentos. Encarou o bolo, quase pela metade, sobre o papel laminado. Cuspiu em cima da cobertura cristalizada. Uma cusparada onde estava depositado todo o seu ressentimento, todo o seu rancor. Terminou o pacote e, em seguida, levou-o de volta para a sala entregando-o ao Teixeira que, já de pé e maleta na mão direita, beijou-o a testa como sempre fazia e arrastou seu corpo através do umbral da porta. Gertrudes ainda observou-o entrando no elevador que o sugaria de volta para a esposa.

Novamente só, ela sentou-se diante da encomenda de envelopes. Tomou na destra o bico de pena. Desta feita, as letras saíram trêmulas, imprestáveis, lembrando a grafia de um recém-alfabetizado. Chorou copiosamente. “Vou comprar um computador.” - decidiu entre lágrimas e narinas assoadas. Aos poucos, retomou o controle dos nervos e a grafia voltou a ser aquela elogiada pelos clientes.

Trabalhou com dedicação até às nove horas da noite quando lembrou que precisava fazer as compras da semana. Há duas quadras do apartamento existia um supermercado que fechava às dez. Rabiscou no verso de um dos envelopes alguns mantimentos, enfiou no corpo um vestido, no ombro direito sua bolsa, limpou os resquícios de lágrimas do rosto e foi enfrentar a rua.

O contato com o ar noturno pareceu limpar seu ranço de mulher mal-amada e enfurnada em casa. No caminho para o mercado chegou até a desconfiar que certos gracejos emitidos do interior de um boteco das redondezas foram a ela dirigidos. Chegando ao estabelecimento, espantou-se com a quantidade de clientes àquela hora da noite. Lembrou-se então da véspera de feriado. “Que cabeça a minha!” – lamentou o esquecimento. Percebeu que sua vida resumia-se a letras de copista, alunos desinteressados e a esperar pelo Teixeira.

Fazia suas compras pesquisando com cuidado preços, datas de validade, composição dos produtos. Gertrudes era atenta a detalhes e não se deixaria iludir pelas multicoloridas gôndolas de supermercado confundindo clientes. Na sessão de produtos para festas, avistou um pequeno vidro de essência de laranja. Seus olhos umedeceram. Colocou o produto dentro do carrinho de compras.

Empurrando o carrinho entre corredores abarrotados de gente, a professora notou meio escondido no setor de inseticidas um frasco de raticida. No rótulo, o desenho tosco de um rato com duas cruzes na altura dos olhos. Tomou em mãos o frasco e leu com atenção o rótulo. “Veneno em pó”. Pareceu refletir por instantes sobre a necessidade da compra. “Serve!” - decidiu. “Há um rato importunando meu lar. Come da minha comida e leva as sobras para sua toca. Da próxima vez, preparo uma armadilha em forma de bolo de laranja...”

Menção Honrosa no 23º Concurso Nacional de Contos Cidade de Araçatuba - 2010