21 de abril de 2018

A Ceia dos Rejeitados


Simone cantando a versão de “So This is Christmas”, comércio abarrotado de gado-gente consumista, caixinhas em portarias, a obrigação de participar do amigo oculto no trabalho e uma fingida atmosfera de concórdia impregnando as pessoas. Nada disso me incomodava mais do que passar a noite de Natal junto aos familiares. Conservadores, tementes à ira divina ou mesmo hipócritas, pais, irmãos, tios e sobrinhos sempre questionaram minhas escolhas, desde a iniciante caveira tatuada no braço esquerdo – mais tarde tomado inteiro por dragões, seres mitológicos e monstros de diversas estirpes – a minha opção sexual finalmente assumida há alguns anos quando fui viver com Nanda, minha companheira até hoje.
Juntas, decidimos que passaríamos o natal em casa, na companhia de poucos amigos. Nanda ainda havia questionado se minha saúde, precária nos últimos meses, não atrapalharia nossos planos de anfitriãs. “Quero estar entre àqueles que amo.”, sorri em resposta.
Deixamos o prato principal, o peru de natal, sob responsabilidade de Rogerinho, nosso cabeleireiro de longos anos e chef de cozinha amador. Ele sempre aparecia em nossas reuniões com quitutes, regalos comestíveis e outras guloseimas. Órfão de família viva que o expulsara de casa aos treze anos quando o descobriram nos braços de um vizinho, Rogerinho nos adotara como duas tias quarentonas. Bebidas e complementos à ceia foram rateados entre os outros convidados.
O primeiro a chegar foi Tarso. Veio na companhia de uma quantidade imensa de packs de refrigerantes de variados sabores – Tarso há anos frequentava os alcoólicos anônimos – tudo sustentado pelos braços cuja envergadura fizera sua fama de medalhista olímpico na seleção de vôlei como meio de rede. Ansioso como sempre fora, chegara cedo e sem deixar de reclamar da algazarra dos cachorros presos no quintal sacudindo os trilhos de Santa Teresa. Sofócles, Aristófanes e Ésquilo reagiram assustados, latindo ante a ciclópica figura carregando quatro dúzias de latinhas debaixo dos braços. Abriu o porão e venceu o lance de escadas do nosso sobrado. Após descarregar a carga na cozinha, deixou-se desabar no maior sofá da casa enquanto choramingava:
Aquela puta me largou de vez!
Tive um pouco de dó em ver um gigante chorando feito criança enquanto nos explicava que desta vez o rompimento com a esposa fora definitivo, que ele temia não ver o filho crescer e que não estava ali para sustentar capricho de mulher fresca. “Pelo andar da carruagem, acabaria leiloando minha medalha olímpica!”
Depois, vieram Sascha, Alberto e Miguel, amado trio “Dona-flor e seus dois maridos”. Ricos, bem-apessoados e adeptos do poliamor, escandalizavam o jet-set carioca com aquela união. Trouxeram vinhos maravilhosos.
A cerveja ficou por conta de Adélio, dublê de ator de filmes de estética favela e funkeiro. Com o nome artístico de MC Délio da Perereca, em homenagem à comunidade do mesmo nome, caíra em minhas graças depois de haver assistido a um desses filmes. Desejava encaixá-lo em um projeto de seriado de humor que estava escrevendo para televisão mas que andava hibernando em virtude da minha doença. Família? A dele havia sido destroçada pela violência no Rio. Sobrara um irmão traficante, perigoso e sanguinário, enjaulado em um presídio de segurança máxima. Para o bem da sociedade, passaria o nascimento do Cristo na solitária. Adélio trouxe uma loura oxigenada assemelhada às panicats que ele esquecera de mencionar o nome nas apresentações.
Nanda me alertou sobre a demora de Rogerinho. A febre, minha parceira constante dos últimos meses, se manifestou depois de algumas horas de trégua. Alegando indisposição, pedi para minha companheira encontrá-lo através de uma mensagem de texto ou pelo celular enquanto fiquei a observar o comportamento dos nossos convidados. Tarso, entre um gole e outro de Coca-cola, esculhambava a ex-esposa para Alberto que parecia atento a tudo o que o campeão relatava, visto suas caras e bocas cambiando da indignação à piedade ante cada resmungo. Sacha e Adélio conversavam animadamente, enquanto Miguel por cortesia ciceroneava a loira, que descobrimos se chamar Josiane, pelos cômodos da casa após aquiescência de Nanda que, entrementes, tentava encontrar digitalmente Rogerinho e nossa ceia.
Não sabe da maior! O viado está agora no supermercado comprando a porra do peru! – sussurrou Nanda em meu ouvido. Podia sentir o ódio em seu hálito de menta, mas como estava em tempos de paz e amor e a febre me deixava sem disposição para brigas, pedi que ela relaxasse.
Antes da meia-noite ele chega…
São quase oito horas, Lídia! O cara ainda vai ter que preparar o Peru, arroz, a farofa… A gente devia ter encomendando uma ceia pronta!
E deixar o menino perder a oportunidade de ser gentil?
A gentileza dele parece carecer de responsabilidade.
Mudei de assunto para não me aborrecer em um dia em que desejava harmonia entre os meus amigos. Se quisesse confusão, teria pedido para que Nanda me levasse à casa dos meus pais e suas ideias fundamentalistas, suas indiretas acerca da minha vida, o quase desrespeito com minha enfermidade.
Pensando em escrever uma coisa curta, talvez um conto, para ganhar ritmo.
Já tem o tema?, perguntou Nanda.
Umas ideias passeando pela cabeça, nada definitivo, respondi.
Perto das nove, Rogerinho finalmente apareceu. Tocou ruidosamente o a campainha. ouriçando novamente os rottweilers. Rogerinho detestava interfones.
O Cérbero está preso? - gritou.
Você sempre pergunta isso, meu caro. Já sabemos dos seus conhecimentos rasos de mitologia e da alusão aos três simpáticos cãozinhos de nossas anfitriãs – debochou Alberto surgindo na janela do sobrado cujo pequeno quintal abrigava os cachorros, nossa segurança em um bairro outrora aprazível.
Subiu um tanto invocado pelas provocações de Alberto, mestre nas ironias. Sascha o recebeu com um selinho e Nanda com uma série de impropérios. Miguel tomou os sacos de supermercados que ele tinha em mãos, em especial o mais pesado que abrigava a ave. No sofá, Tarso se lamentava para mim.
Dez anos de casamento com aquela ingrata!
Rogerinho, após leve discussão com Nanda, tratou de iniciar os preparativos para assar o peru. Sascha e Josiane o assessoravam. Alberto, taça de vinho em uma das mãos, duvidava dos dotes culinários do cabeleireiro.
Esse só manja de quitutes e tábuas de frios. Não deveríamos ter confiado tamanha tarefa ao nosso pobre alisador de cabelos crespos – dizia a Miguel que gargalhava em resposta.
Rogerinho não deixava por menos.
Não fode, vértice podre do triângulo!
Em meio a galhofas, burburinhos e a música ambiente, levantei-me ainda um pouco amolecida pela febre e fui à janela onde estava Nanda. Ela afagou meus cabelos e sorriu. O hálito de menta agora exalava ternura.
Está melhor?
Assenti com afeto. Ambas ficamos observando a ladeira de paralelepípedos entrecortada pelos trilhos de um bonde que raramente transitava. Havia um quase deserto de almas. Um mendigo ocupava o outro lado da calçada deitado em seu colchão maltratado pelo tempo. Saberia ele que hoje era véspera de natal?
Não faço a menor ideia, mas a gente manda uma quentinha para ele assim que o Rogerinho conseguir assar o peru.
O cabeleireiro travava naquele momento árdua batalha contra a ave que já estava há algum tempo no forno. Reclamava das instruções na embalagem, achando o tempo de assamento curto. Sascha dava mais palpites que efetivamente ajudava, Josiane preparava a farofa e o arroz enquanto os outros convidados bebiam.
Pela nossa janela passava agora Kátia. Descia de Santa Tereza rumo à Lapa levando seu rebolado dentro do vestido colado e botas de cano alto. Teria ela clientes naquela noite?
Certamente que não. Quem na véspera de natal vai procurar uma garota de programa? Não vai ganhar nem para as passas.
Que maldade, Nanda –, ralhou Adélio enquanto lhe oferecia um copo de cerveja.
Ficamos os três a conversar. Passaram dois policiais em sua ronda noturna e ao fundo ouvia-se o ruído incômodo de um caminhão de lixo. Para alguns trabalhadores e desfortunados aquela noite se descortinava como outra qualquer. Despertados pelo barulho, Sofócles, Aristófanes e Ésquilo novamente latiram. Nanda achou que era hora de soltar as feras no quintal. O bairro andava inseguro ultimamente. Desceu para cumprir a tarefa.
Finalmente, por volta das onze horas, o peru ficou pronto. Orgulhoso, Rogerinho exibia o assado em uma bandeja como fosse a cabeça de um Sansão. Batemos palmas, Adélio a comparou com um avestruz, dado o seu tamanho, eu o batizei por Fênix aludindo à minha esperada cura que representaria um renascimento, Alberto preferiu apelidar nossa janta de uma Ave do Estínfalo, perigosa e, consequentemente, intragável. Josiane e Adélio esculpiram interrogações em suas faces em sinal da suas ignorâncias acerca de mitologia grega. Rogerinho, que só conhecia o mito do Cérbero, também não entendeu a chacota. Os outros riram, com exceção de Tarso que ainda pensava na ingratidão da ex-mulher.
Tomado pelo clima festivo, Rogerinho exagerou em suas já clássicas presepadas e começou a bailar pela sala equilibrando a bandeja. Em um dos seus rodopios o pior aconteceu: um tropeço na borda de um tapete e o peru ganhou vida, voando em direção à janela. Tarso, que estava sentado próximo, ainda tentou um dos bloqueios que o deixaram famoso mas conseguiu tão somente interceptar a bandeja. Fênix foi espatifar-se no quintal e sob nossos olhares incrédulos que lotaram o quadrado da janela vimos a ave ser destroçada pelas mordidas dos rottweilers. Foi um espetáculo digno de uma arena da antiguidade. Em parcos minutos o peru desapareceu entre as dentadas de Sófocles, Aristófanes e Ésquilo que, terminada a refeição, olharam para cima num misto de agradecimento e quero mais.
Nanda, ariana típica, tentou, a exemplo dos cães, estraçalhar Rogerinho. Foi contida por Miguel e Tarso. Os outros convidados entreolhavam-se atônitos ante o acontecimento. Rogerinho chorava, implorando desculpas. A fúria de Nanda estancou e aos poucos, o ambiente foi serenando e o processo de decantação de emoções deixou apenas uma atmosfera decepcionante. “E agora?”. A pergunta coletiva ecoou por toda a sala.
Pensei alguns segundos. Não desejava que a noite natalina tão aguardada tivesse um desfecho infeliz. Eu era uma roteirista, uma especialista em tramas intrincadas e, por que não, finais felizes. Espremi toda a minha criatividade e a solução, simplória veio de imediato. Disse que iria descansar poucos minutos no quarto. Todos assentiram com suas caras de velório. Nanda quis me acompanhar, creditando minha retirada da sala aos eventos desagradáveis da noite. Tranquilizei-a com um beijo na boca e fechei a porta. Minutos depois, retornei sorrindo.
Tudo resolvido. Nada de perguntas e confiem. Ânimo, gente! Afinal, não estamos em uma festa?
Aos poucos a normalidade, ainda que desconfiada devido as minhas palavras, se reestabeleceu. Rogerinho servia bebidas, Alberto servia sarcasmo. Um grupo conversava sobre arte literatura, outro malhava o governo. Tarso olhava o vazio abrigando um copo de refrigerante na manopla direita. Sentada ao lado de Nanda, deixei minha cabeça cair em seu ombro. Os cães, saciados, pareciam dormir.
Soou o interfone. Levantei-me e fui atender. Minutos de ansiedade por parte dos convidados. Quando abri a porta e deram com a figura do entregador gargalharam, uivaram e aplaudiram meu ovo de colombo. Três pizzas superfamília de calabresa, napolitana e de palmito, a predileta de Nanda, começaram a ser divididas, não feito hóstias sagradas e sim a semelhança de um ritual pagão, com voracidade e gula. Perguntei ao entregador se ele gostaria de passar o natal conosco, prontamente aceito. Servi-lhe uma fatia enquanto Alberto lhe ofertava uma taça de um vinho californiano extraordinário.
No meio da confraternização Nanda lembrou do mendigo. “Convide ele para cear conosco, amor”, disse. Minha companheira foi buscá-lo. De princípio ele estava acanhado e um tanto sujo pelas ruas. Oferecemos um banho e um roupão e assim vestido ele integrou-se a nós. Sacha ofereceu cerveja, ele preferiu refrigerante. ‘Não bebo, senhora. Obrigado.”
Da rua ouvimos os saltos de Kátia estalando pelos paralelepípedos. Nanda a chamou para a ceia. Estava em companhia de uma mulata aparentando um metro e oitenta. Kátia perguntou se poderia levar a amiga. Nanda, coração batendo em compasso natalino, permitiu. Foram recebidas com festa e animaram ainda mais nosso natal com danças e relatos de suas aventuras pelas esquinas da Lapa. Miguel mostrou curiosidade pelos nomes verdadeiros das duas. Kátia, disse se chamar Sirlene. Já Vanessa, a mulata estonteante de olhos verdes fictícios, era Luís Cláudio na certidão de nascimento.
E foram chegando os policiais da ronda noturna, garis, outras garotas de programa, michês, garçons que deixavam o trabalho e meninos de rua que se revelaram corteses, tratando a todos de tio. A nata dos rejeitados pela sociedade jantou conosco naquela noite. O milagre da multiplicação da pizza realizou-se em nossa sala, alimentando a todos. O ambiente regado de confraternização e alegria, cerveja, vinhos e refrigerantes. Tarso mostrou-se interessado em Kátia/Sirlene e esqueceu a ex-mulher cujo nome nem eu lembrava. Rogerinho e o entregador de pizza flertavam.
À quatro horas da madrugada a festa estava no ápice mas minhas forças se esvaíram e precisei me deitar. Despedi-me de um por um dos convidados desejando feliz natal. Mal fechei a porta percebi a diminuição do som e as conversas sussurradas em respeito a meu repouso. Mas não consegui dormir. Fiquei pensando nos acontecimentos da noite. Assim, acendi o abajur, peguei meu caderno de notas e comecei a rascunhar esta história.

19 de janeiro de 2016

O Presente

Quarenta e três anos, trezentos e sessenta e três dias e algumas horas. Daqui a dois dias farei quarenta e quatro. Difícil imaginar que tanto vivi. Besteira! Sou jovem ainda. Volta e meia me pego feito um velho falando. Velho aos quase quarenta e quatro? Muitos começam realmente a vida nesta idade, porém, sempre pensei que não vingaria trinta e cinco. Pura intuição, longe da racionalidade que um estatístico como eu deveria se possuidor. Quase acertei quando uma crise de apendicite me pegou de surpresa dois meses após o meu trigésimo quinto aniversário. Vi a cara da morte. De qualquer forma, eu falhei nas previsões. Estar vivo é a prova. Sou um Nostradamus de araque, um profeta de quinta categoria, Ainda bem.
Nunca consegui fazer um embrulho que preste. Sem jeito mandou lembranças. Sou uma negação com trabalhos manuais, não sei trocar uma tomada. O Jorge, porteiro do prédio, é que me salva nestas situações domésticas. Sou bom mesmo é com a cabeça. Números. Sou uma calculadora ambulante.
Mas está muito do mal feito este pacote. Benza Deus! O papel está amarrotado, as dobras mal feitas, a fita adesiva que prende as extremidades parece ter sido aplicada por uma criança. E o que dizer do barbante frouxo? Pura vergonha! Mas o que está dentro é o que conta. Em verdade, vale mesmo é a intenção. Oswaldo na certa vibrará com a minha lembrança. Sujeito solitário o Oswaldo, o pobre! Sem amigos, sem esposa, mal troca umas palavras com os colegas da repartição. É só aquele vai e vem, da casa para o trabalho, cinco vezes por semana, onze meses por ano. E o mês de férias? Oswaldo se trancafia trinta dias no apartamento. Que vida medíocre e sem expectativas!  Coitado do Oswaldo... Carece de saber que no mundo alguém se preocupa com ele. E calhou desse alguém ser eu. Amanhã, mal ou bem feito, postarei o pacote nos correios. Certamente, ele ficará exultante com o regalo.
***

Quarenta e quatro anos. Cerca de dezesseis mil e sessenta dias, fora os anos bissextos. Deixe-me fazer a conta exata. Um ano possui trezentos e sessenta e cinco dias e oito horas. A cada quatro anos, um dia. Salvo engano, onze dias extras. Dezesseis mil e setenta e um dias! E o de hoje é o do meu aniversário. Isto é o que importa. Mas como os correios estão demorando! Postei a encomenda antes de ontem e até agora nada! Os serviços dos correios já foram mais elogiáveis. Será que eu errei o endereço? Não... Não cometeria tamanha estupidez. Conferi o CEP? Deixe de bobagem, Oswaldo. Você sabe muito bem qual é o CEP! A campainha! Certamente é o porteiro Jorge com o meu presente! Espero que o pacote mal feito tenha resistido afinal, sou um desajeitado em habilidades manuais. Feliz aniversário, Oswaldo! Quarenta e quatro primaveras! Dezesseis mil e setenta e um dias! Vai ter bolo? Feliz aniversário para mim! Feliz aniversário, pobre, patética e solitária criatura...

20 de dezembro de 2015

Mondrique

Mondrique

Durante a execução do seu número, Mondrique mal se permitia disfarçar a tensão. Ela estava lá, a congestionar-lhe as feições, perturbando sua performance no picadeiro. Havia errado um truque, mas o respeitável público daquela cidade interiorana perdida no mapa brasileiro parecia alheio à apresentação e não notou seu equívoco quando um coelho saiu sorrateiramente da manga de seu smoking no lugar de um baralho com 52 cartas. Coelhos saem da cartola, resmungou o mágico enquanto mirava sua partner, Reginalda, também tensa em virtude dos acontecimentos que em poucas horas iriam se concretizar. Enfiada em um sumário maiô coberto de paetês, Reginalda fazia caras e bocas mal ensaiadas para o pequeno público que fora prestigiar o Gran Circo Continental na falta de melhor entretenimento naquela cloaca de mundo onde viviam.
Não era bem verdade que os espectadores da última noite em que o Gran Circo Continental se apresentaria estavam totalmente displicentes em relação ao espetáculo. Havia alguém, o delegado da cidade, que aplaudia freneticamente cada trejeito de Reginalda. Também pudera. Ela aceitara o convite para permanecer na cidade, tornando-se amante clandestina do agente da lei com casa, comida e um par de trepadas semanais tão logo o circo baixasse suas lonas. Mondrique estava desgostoso. Jurara amor eterno à Reginalda e não esperava tão sórdida traição. Como descobrira? Mais do que mágico, Mondrique era dotado de poderes sobrenaturais e a arte da adivinhação era somente mais um deles.
Poderia fulminar o casal adúltero por intermédio do seu olhar de seca pimenteira. Já havia experimentado em certa ocasião, não com pimenteiras e sim com um vira-lata que ousara avançar em sua canela numa madrugada perdida no tempo quando fora esticar as mesmas depois de uma apresentação em outra cidade. O pobre cãozinho trincou os dentes, estrebuchou e literalmente caiu duro em questão de segundos. O próprio Mondrique espantou-se com tamanho poder e com o tempo aprendeu a controlá-lo e, sobretudo, não o utilizar em contendas ou descontentamentos. E era esse agora o caso.
Maldita clarividência, pensou enquanto agradecia ao público com uma mesura. Despossuído dela sofreria tão somente o momento da perda e não a certeza ansiosa da véspera. De pouca serventia era aquele talento, visto que raras vezes algo de bom para a sua vida ele previra.
Um super homem que ocultava seus super poderes para melhor viver entre os pobres mortais, assim se sentia Mondrique. O povo preferiria as mágicas inocentes. Caso levantasse um cadáver, que pandemônio não causaria! Seria considerado um deus, ou um diabo. Em qualquer dos casos, certamente desgostos e aborrecimentos teria ele aos borbotões.
O pequeno trailer que divida com Reginalda possuía dupla função de dormitório do casal e camarim. Noites de amores ardentes e preparativos para o espetáculo onde Juvêncio se transformava no grande Mondrique, maior mágico do planeta, nas palavras do mestre de cerimônia do circo, aquele apertado trailer havia testemunhado. O nome de fantasia fora chupado e adulterado de um mágico das histórias em quadrinhos ianques. De início sabia que Reginalda por ele nutria um amor sincero, afinal, Mondrique tudo descobria de sentimentos humanos. Um aperto de mão, um abraço, um simples toque em um fio de cabelo ou a intimidade do coito, o mínimo contato corporal e lá estava o mágico roubando os segredos alheios. Com o tempo, aquela faculdade de Mondrique revelou  o tédio da amada, indiferença, desprezo, até culminar pelo interesse de Reginalda pelo delegado e seu projeto de lhe abandonar. Ao menos algum plano para eliminá-lo ou algo parecido Mondrique não captara nos cada vez mais escassos contatos corporais com a futura ex-mulher. Revolta e conformismo acabaram por se digladiar dentro de suas ideias. Que ela fosse, ou melhor: ficasse na cidade.
Quando ele entrou no trailer, Reginalda já lá se encontrava. Retirava a maquiagem. Ela se assustou como uma criança pega em travessura.
– Fez as malas? – ele perguntou.
– Que malas? A gente leva tudo dentro do vagão mesmo – gaguejou a partner sem conseguir disfarçar a surpresa.
– As malas que o puto do delegado passará aqui para pegá-las ou você iria fugir escondida feito um rato que se esgueira pelos esgotos?
Quando Reginalda se foi, Mondrique decidiu que mulher alguma valeria o sacrifício de seu amor. Nunca mais se apegaria a rabos de saia, rachas ou jogos de seduções femininas. Para ele, bastavam agora as quengas das casas de tolerâncias instaladas nos arredores das cidades por onde o Gran Circo Continental aportasse. Haveria até dividendos: a cada toque recebido ou dado em uma mulher da vida já saberia de antemão o que ela pensava a seu respeito. Muitas vezes, interrompia o encontro ou perceber que por ele algumas damas de bordéis sentiam asco enquanto fingidamente gemiam espremidas entre o corpanzil do mágico e os lençóis fedendo a amores clandestinos. Pagava a cafetina e voltava para o seu trailer sem mais explicações. Nessas ocasiões, tornava a resmungar: maldita clarividência.
Certa ocasião, quando o circo estava armado em um lugarejo perdido no sertão nordestino, algo inusitado ocorreu. Mondrique, após o espetáculo onde se utilizou de maneira sutil dos seus reais dotes de levitação, com certo cuidado para que parecesse um mero truque de ilusionismo, sentiu necessidade de uma mulher para se aconchegar. Como sempre, perguntou de forma discreta a algum homem das cercanias onde estava instalada a zona da cidade. Informações tomadas, rumou para o casarão na outra margem do rio. Puteiro das antigas, com ares de cabaré, shows de moças quase peladas rebolando no palco e uísque de má qualidade servido. Nem bem havia se alojado atrás de uma mesa solitária, uma ruiva de vestido curto exibindo coxões alvos e colo sardento explodindo pelo decote acentuado, sentou sem cerimônia ao seu lado.
– Bebe o quê, meu lindo?
– Para mim, uma água tônica. A moça pode pedir o que desejar.
Água tônica naquele tipo de estabelecimento não havia. Contentou-se com um refrigerante. A ruivona, quase um metro e oitenta de carnes bem distribuídas pela silhueta, lhe pareceu simpática, além de sexualmente atraente. Gastaram alguns minutos em conversa pra lá de fiada e Mondrique pagou as bebidas enquanto combinava os honorários por uma hora de serviços na horizontalidade de uma cama. Subiram uma escada em caracol para o segundo andar do prostíbulo onde ficavam os quartos. A ruiva ia à frente, com o traseiro quase esbarrando nas ventas do mágico. No corredor, ela pegou na mão sinistra de Mondrique para guiá-lo até um dos cômodos. Estranheza correu por todo o seu corpo. Não divisou nada após o contato. Que intenções teria aquela mulher? Sua vidência findara? Haveria alguma interferência, um ruído na comunicação parapsicológica? Maldita clarividência que o abandonara, pensou.
Dentro do quarto semelhante a uma cela de convento pela pobreza dos móveis e cabine de navio pela economia de espaço, quis saber a graça da ruiva:
– Gigi.
Toda puta provinciana se chamava Gigi.
– De guerra? – perguntou Mondrique tocando-a de leve na ânsia de descortinar sua verdadeira identidade. Nenhum sinal telepático.
– Claro, lindo. O da pia batismal eu digo só para aquele que me tirar da vida – zombou enquanto mostrava os dentes alvos como o corpo que revelava à medida que o vestido escorria até o chão.
Diante da monumental voluptuosidade que se apresentava à sua frente, Mondrique esqueceu por um tempo as inseguranças dos poderes extra-sensoriais perdidos e se perdeu nos labirintos de Gigi, que dele fez gato, sapato, barba, cabelo e bigode, deixando-o extasiado.
Enquanto o Gran Circo Continental permanecia naquele rincão no fim do mundo, Mondrique quase que diariamente visitava Gigi nos seus aposentos de luxúria. Ela se mostrou receptiva ao mágico, tratando-o com carinho, ternura e muito sexo. Após cada ato consumado, dia após dia, o mágico tentava, através de abraços, beijos e chamegos, conseguir extrair da meretriz algo que revelasse seus verdadeiros sentimentos. O afeto que Gigi demonstrava antes e depois dos entrelaçamentos mundanos eram reais? Maldita dúvida que me assola, resmungava Mondrique.
E ele foi se apaixonando pela marafona do interior, quebrando a promessa que fizera quando da deserção de Reginalda. Com medo de que o dono do circo resolvesse encurtar a temporada na cidade em razão das baixas bilheterias, decidiu usar seus poderes ocultos e incrementar cada vez mais seu número, visando atrair público e manter o picadeiro montado por aquelas bandas.
Foi um tempo em que o Gran Circo Continental vivenciou apresentações memoráveis, desde a já manjada levitação de objetos, alguns dias depois trocados por voluntários que se aventuravam ao sobrevoo sobre a plateia quase esbarrando no alto da lona circense, passando por um extraordinário espetáculo de luzes e fogos que jorravam das mãos energizadas de Mondrique, este tomando as devidas precauções para não ferir um membro da plateia mais entusiasmado.  O ponto alto foi quando ele deu de fazer adivinhações. Desta forma, descobriu que seus poderes telepáticos só com Gigi não funcionavam. Maldito mistério, lamentou.
O circo entupia de gente na esperança de conhecer um futuro melhor após o mágico tocar-lhe as mãos. Contudo, Mondrique assevera que só o passado revelava. O futuro a Deus pertence, repetia prevenido em não se meter em complicações acerca das fofocas locais. Atendia no máximo a meia dúzia de curiosos, revelando nomes de família, doenças de infância, fatos marcantes em suas existências. Do passado, escondia com habilidade qualquer fato embaraçoso daqueles que se dispunham a tomar parte no número.
A fama do mágico correu toda a região e claro que a outra margem do rio não poderia escapar das notícias que um prestidigitador estava fazendo proezas no cirquinho mambembe que por ali aportara. Gigi, que já sabia onde e no que Mondrique labutava, foi em seu dia de folga, acompanhada por um cortejo de quengas, prestigiar o sucesso de seu cliente preferencial. Sentou-se na primeira fila ombreada por suas colegas de profissão, para o escândalo da sociedade local. Mondrique ficou encantado com a visita e no final da apresentação, materializou um ramalhete de flores que ofertou à amada. Ele tinha planos.
– Quer casar comigo, Gigi?
– Tenho que ir com o circo, lindo?
– Na cidade eu fico, mas terás que largar a saliência.
– Aceito então.
Alugaram uma casinha do outro lado da margem do rio. Mondrique dava consultas, passado, presente e futuro. Até pequenas curas fazia. Tudo a preços módicos, mas o suficiente para levarem uma vida confortável. Com o tempo, caravanas começaram a chegar à porta da casa, no intuito de consultarem o vidente agora famoso. Hotéis, restaurantes e lojas de lembrancinhas alavancaram o comércio da região. Até o puteiro onde Gigi trabalhara se beneficiou com o fluxo de turistas. Mondrique tinha alguns aborrecimentos vez por outra. Em inúmeras ocasiões foi preso pela prática de curandeirismo e solto após alguns dias, voltava ao seu ofício de médium. Gigi na verdade se chamava Laurinda. Isso Mondrique, agora rebatizado de Irmão Juvêncio, não adivinhara. Ela mesma, cumprindo promessa, revelara o nome ao marido. O que nunca Juvêncio descobriu foi que Laurinda também possuía os dotes da clarividência. De alguma maneira o contato corporal entre aqueles seres embaralhou o dom do esposo enquanto o dela se manteve intacto. Abominava utilizá-lo. Durante toda infância, de bruxa era chamada pela família e vizinhança. Assim, quando Juvêncio a tocou na noite em que se conheceram, ela já sabia o final dessa história.


19 de novembro de 2015

Pagliaccio

Trata-se de uma deslavada inverdade que eu deteste palhaços. Um equívoco, desconhecimento dos fatos. Gosto inclusive de assistir suas estripulias em programas de televisão e é constante pegar-me em estridentes gargalhadas ao interagir com eles da plateia de um espetáculo circense. Nada contra estes respeitáveis artistas, dignos, a despeito da cara pintada e roupas coloridas. A imprensa exagera a esse respeito. Apenas não quero fazer parte do seu mundo, ser um deles, tenho lá os meus motivos.
Meu incômodo em relação a palhaços iniciou-se no dia em que a Tia Sônia, casmurra professora da turma do jardim de infância, resolveu dividir entre seus pequenos alunos os papéis que cada um desempenharia na festa de encerramento do ano letivo. Eu queira por demais representar um sapo no número musical ambientado em uma floresta, porém, Tia Sônia, mais sorumbática do que nunca, decidiu colocar-me no grupo dos Palhacinhos Dengosos. Reclamei com uma surpreendente polidez para os meus parcos cinco anos e como não consegui convencê-la, terminei por resignar-me, achando que ao explicar o caso à minha mãe tudo ficaria resolvido.
Mamãe já se acostumara com o meu comportamento maduro para a idade. Ela acreditava ser eu um “espírito antigo” desde que fora consultar um pai-de-santo para livrar-me de uma bronquite que nenhum médico da Terra conseguia curar. O pai-de-santo, incorporado por uma entidade que afirmava se chamar “Doutor Marcolini”, médico italiano que habitara Veneza no ápice da Renascença, ao dar de cara comigo abriu um largo sorriso e exclamou.
—  Oh! Você por aqui? Que grande alegria! – e virando para minha mãe disse: — Este já sabe de tudo. Deixe-o tomar as rédeas de sua própria vida. É um espírito muito antigo… Muito antigo…
E receitou um preparado à base de xarope de ameixa e uma série de ervas que em dois tempos deu por encerrada a persistente bronquite que me acompanhava.
Sendo espírito antigo, mamãe deduziu que eu trazia de outras vidas aquele comportamento adulto que eventualmente desabrochava, como no episódio do palhaço. Seria comum na minha idade espernear, armar um berreiro, mas qual? De dentro de minha roupinha vermelha do jardim de infância, tão somente dizia que não queria fazer “papel de palhaço na frente de todo mundo”. Preocupada, a mãe foi ter com a professora.
— Não posso mudar o Marquinhos de grupo agora, Dona Veridiana – protestou a casmurra – Como as outras crianças reagirão? Além do mais, os coleguinhas dele estão adorando a ideia de se fantasiarem de palhaços. Não entendo porque só o seu filho está com esta história. Vamos fazer o seguinte: o Marquinhos ensaia e a senhora diz que ele não vai se apresentar. No dia, lá no teatro, vestido de Palhacinho Dengoso, eu tenho certeza de que ele vai adorar e se divertir como todos os outros. E a senhora vai ficar orgulhosa com os aplausos.
Tia Sônia apelou ainda para o conceito de disciplina e que seria bom para o menino aprender desde cedo que na vida nem sempre podemos fazer tudo o que desejamos.
Mamãe achava que deveria seguir as orientações do “Doutor Marcolini” e deixar-me “tomar as rédeas da própria vida”, mas preferiu não se confrontar com Tia Sônia, lembrando-se que meses atrás eu já havia entrado em contenda com minha primeira mestra ao teimar em não tocar “coquinhos” na banda mirim da escola. Sentia-me ridículo batendo duas meias-esferas de casca de coco seco e sempre que o ensaio se iniciava, pegava na caixa de instrumentos um triângulo de aço. Diante da minha firmeza em não ser um mero tocador de coco, Tia Sônia na oportunidade se deixou dominar pela insubordinação de um moleque de cinco anos, mas desta vez seria diferente. Uma maçã podre dentro de uma caixa poderia contaminar todos os frutos e para tia Sônia não perder o leme de sua turma, eu seria um palhaço.
Os primeiros ensaios revelaram que, mesmo sentindo-me desconfortável, eu era o melhor entre os oito Palhacinhos Dengosos selecionados. Ao som da música tema…
O Palhacinho Dengoso,
Dá três pulinhos assim!
O Palhacinho Dengoso,
Vira os olhinhos assim!
…lá estava eu, virando os meus olhinhos infantis com aplicação espartana, dando três pulinhos e cambalhotas com maestria de um palhaço profissional. Tia Sônia, encantada, decidiu que eu me apresentaria na primeira fila, no centro do palco. Desconfiado, afirmei só estar ensaiando e não iria participar do espetáculo. A professora, livrando-se momentaneamente da sua natureza carrancuda, afagou meus cabelos ruivos e disse:
— Como quiser, meu anjo. Você não vai participar…
A traição rondava a minha própria casa, invadia os corredores, transitava pelos cômodos até chegar ao quarto da minha irmã Natália, dez anos mais velha do que eu e cúmplice do plano de mamãe e Tia Sônia em fazerem de mim um palhaço. Foi de Natália a ideia de comprar uns dois metros de uma imitação de cetim branco com motivos em forma de losangos vermelhos e verdes. Pano não muito caro, contudo de efeito arrebatador. “Maninho vai brilhar no meio daqueles remelentos” – declarava triunfante.
Certo dia, ao chegar do colégio, deparei-me com mamãe e Natália num frenético trabalho de preparo da minha vestimenta de palhaço. Em meio aos seus gritos de entusiasmo diante da obra-prima que julgavam confeccionar, pude, pela primeira vez, ver aquela roupa que iria perseguir-me em pesadelos por anos. Era um simples macacão, parecido com os dos pilotos de corrida, porém com losangos verdes e vermelhos espalhados por todo o seu espaço, tendo o branco como cor predominante ao fundo. As mangas, compridas, eram acompanhadas em toda a sua extensão por uma fileira de guizos que tilintavam enquanto as duas davam os últimos retoques na fantasia. Surpreendidas pela minha chegada, ainda tentaram esconder a roupa. Magoado, resmunguei:
— Já disse que eu não vou me vestir de palhaço!
— Mas a roupa não é para você, Marquinhos,  —  mentiu mamãe. É para o Rogério. A mãe dele não sabe costurar e pediu para eu fazer.
— O Marquinhos tem o mesmo tamanho do Rogério, mãe. Vamos medir a fantasia nele para ver como fica? — perguntou Natália.
E sem que me dessem oportunidade, mediram em mim a roupa que eu ainda guardava pálidas esperanças em realmente pertencer ao Rogério.
No dia da apresentação, um calor infernal assombrou a cidade. Dirigimo-nos, os três, para o teatro onde seria o espetáculo. No táxi eu ainda protestei, dizendo mais uma vez que não iria participar. Mamãe, sorrindo, tranquilizou-me, afirmando que só iríamos assistir, mas a bolsa que minha irmã levava no colo pelo volume denunciava que eu não teria escapatória.
Dentro do camarim, várias crianças eram aprontadas por suas mães, cuidando de suas fantasias como escudeiros zelavam pelas armaduras dos seus cavaleiros. Sem opor resistência, deixei-me vestir e ser maquiado. Na cabeça, recebi uma peruca improvisada com uma meia feminina cujos cabelos em lã vermelha só aumentaram o calor. Nos lábios, um batom que tornou imprestável o sabor do refrigerante a mim oferecido minutos antes da apresentação. Estava vencido, domado, obrigado pela primeira vez em minha curta existência a fazer algo que eu não desejava.
Fomos chamados ao palco. Palmas nos receberam. As cortinas foram abertas. Resignado, encarei o público. Temia a vergonha de me expor diante daqueles desconhecidos, ser ridicularizado pela minha condição, ainda que temporária, de palhaço. Porém, aquele bando de pais e parentes que compunham a audiência pareceu-me amistoso, quase encorajador. Mamãe e maninha, sentadas na primeira fila, aplaudiram freneticamente a nossa entrada.
Um tanto encabulado, corri os olhos pelos meus sete companheiros de jornada. Todos pareciam deslumbrados com a oportunidade de estarem ali. Por um momento pensei ser apenas eu a criatura destoante da atmosfera de alegria a envolver o teatro. De súbito, a introdução da melodia já tão íntima explodiu nos alto-falantes.
O Palhacinho Dengoso, dá três pulinhos assim!
Desviei os olhos da plateia e procurei executar a coreografia ensaiada da melhor maneira possível. O calor por debaixo da vestimenta incomodava, as gostas de suor banhavam o meu rosto e misturavam-se com as rodelas de ruge que circundavam as bochechas. Uma sensação de total abandono me consumia.
O Palhacinho Dengoso, vira os olhinhos assim!
Esta era a parte do número que eu mais detestava. Tínhamos que nos posicionar de frente para o público, pôr as mãos nos joelhos e ao mesmo tempo arregalar nossos olhos e revirá-los. Tia Sônia havia ensaiado aquele momento até a nossa quase exaustão.  Creio que nossa atuação deva ter causado um efeito arrebatador a julgar o “oh” de entusiasmo emitido pelo público. Percebi, em um canto do palco, Tia Sônia com uma expressão de alegria construída no semblante costumeiramente tão sisudo. Em vez de me sentir recompensado, desejei que os minutos corressem, e que tudo aquilo se encaminhasse para o fim.
O Palhacinho Dengoso, dá piruetas assim!
Meus guizos emitiram um estridente som, fruto das minhas piruetas, executadas com maestria. Deus! Como eu queria ir embora!
Por um momento tudo pareceu distante. Já não era eu que ali estava. Meus pensamentos cavalgavam no cérebro desconexos, enquanto o corpo, vazio de emoções, executava o mecânico bailar. Vieram à minha mente as figuras de mamãe e Natália. “Traidoras”, rosnei. O desejo de chorar apoderou-se de mim, contudo, finou-se, sendo substituído por uma poderosa sensação de alívio ao perceber que a apresentação terminara.
Foi então que algo surpreendente aconteceu, moldando para sempre os rumos da minha existência.
Aplausos pipocaram de várias partes do auditório. Longe de serem polidos, levavam consigo a marca do entusiasmo verdadeiro. A plateia havia amado nossa apresentação. Agradecemos com o conhecido aceno que os artistas fazem ao final do espetáculo, mãos dadas, reverência conjunta. A cortina cerrou-se e o público continuou sua manifestação de agrado. Surpreso, eu e meus colegas presenciamos as cortinas serem reabertas e os espectadores levantando-se para aplaudirem de pé! Sugiram os primeiros pedidos de “bis”, que pouco a pouco cambiaram para o desejo quase unânime da plateia. Os acordes de “O Palhacinho Dengoso” foram novamente executados e, quando dei por mim, já estávamos em plena encenação do nosso número sob palmas frenéticas. E eu estava adorando tudo aquilo!
Décadas consumidas por estas lembranças de infância, sentado diante do espelho do meu camarim, chego a rir refletindo sobre as ironias da vida. Não fosse o Palhacinho Dengoso, meu début nos palcos, eu hoje não seria o aclamado cantor lírico Marcos Marcolini, tenor brasileiro de sucesso na Europa. O sobrenome artístico eu tomei emprestado do espírito que mamãe consultara. Em idas posteriores ao centro de umbanda, o próprio Doutor Marcolini revelara ter sido eu um cantor de operetas, seu contemporâneo em Veneza. Afirmava ele que estivéramos juntos “na experiência da carne”. Segundo o médico do outro mundo, eu voltara com o encargo de brilhar através da arte, incumbência que fracassara na vida anterior. Já Marcolini se viu obrigado a dar consultas por séculos até o resgate de suas dívidas contraídas em outras existências. Ainda que duvidasse das crendices cultivadas por mamãe, não desmerecia a boa vontade do médium pelo qual o doutor renascentista se manifestava e considerei justo homenageá-lo usando seu nome.
Apenas um detalhe intrigava os amantes da ópera e a crítica especializada: por que o grande Marcos Marcolini nunca havia interpretado Pagliacci, de Ruggero Leoncavallo? Diante da dúvida, eu sorria sempre que tal questão brotava em alguma entrevista e, brincando, dizia não estar à altura de representar o personagem imortalizado pelo mito Enrico Caruso para, em seguida, invariavelmente brindar o meu interlocutor com um tostão da famosa ária: “No! Pagliaccio non son, se il viso è pallido, è di vergogna…”

18 de setembro de 2015

Desejo

Estancou maravilhado diante daquele peitão ali à mostra. E as coxas carnudas então? Deixavam qualquer mortal babando de vontade. Entusiasmou-se com sua pele bronzeada, douradinha, cheirosa. Mas era um sonho quase inatingível para ele, um reles mendigo. Resolveu passar o dia esmolando na esperança de conseguir o dinheiro suficiente para saciar o carnal desejo, afinal, também não era ele um filho de Deus?
Terminado o dia, notas amassadas dentro dos puídos bolsos, tomou coragem e foi direto ao assunto.
- Boa noite.
- O que há de boa nela? – foi a resposta indelicada.
- Quanto custa? – perguntou apontando com o queixo.
- Dez real, completo.
- Farofinha também?
- Incluída.
- Vou querer.
Voltou para a praça onde dormia feliz, de posse do suculento frango assado que tanto sonhara. O arrogante e mal-educado português da padaria que se danasse.