4 de setembro de 2011

Fora dos Trilhos

Tenho uma relação de estranhamento e fascinio com os bondes de Santa Teresa. O bucolismo do bairro cujo pavimento de pedra riscado pelos trilhos nos remete ao principio do século XIX sempre contrastou com a íntima convicção que aquele meio de transporte era obsoleto e perigoso. Ingenuamente, eu acreditava que, em virtude de Santa Teresa ser uma área fortemente visitada por turistas, os bondes mereciam uma maior atenção por parte dos governantes e que os veículos deveriam ser modernizados mantendo apenas uma “casca” semelhante à original, preservando suas características tradicionais. Tombado pelo patrimônio histórico e sob a “irresponsabilidade” do poder público o bonde número 10 veio tombar literalmente, ceifando a vida de cinco inocentes.
A primeira experiência que eu travei com os bondes de Santa Teresa foi quando participei de um curso de guias de turismo na década de 90 e minha prova como guia seria exatamente o aprazível bairro. Necessitando conhecer previamente o percurso, rumei eu para a estação localizada em uma escondida rua próxima a Senador Dantas. Àquela época já experimentei enorme desconforto com o abandono dos bondinhos logo que pus os pés na estação. Esperei longo tempo para que surgisse um bonde. Não sabia que o meio de transporte voltava justo naquele dia após uma longa inatividade. Meia dúzia de testemunhas aventureiras me acompanharam na viagem de reinauguração do sistema, sem pompa, circunstância e autoridades, evidentemente sabedoras da qualidade medíocre do transporte que ofereciam a população.
Muito sacolejo, barulho do atrito das rodas sobre os trilhos e incrível sensação de insegurança foram as minhas primeiras impressões. As pessoas pegando o bonde andando e viajando no estribo também me causaram estranheza. E se elas caíssem? De quem seria a responsabilidade? Pensei durante todo o trajeto até o Largo das Neves. Na volta, uma turista holandesa teve sua bolsa arrancada das mãos por um assaltante que estrategicamente pulou antes do bonde entrar nos Arcos da Lapa. Certamente o sujeito há muito se utilizava da técnica de puxar os pertences de suas vitimas segundos antes do bonde tomar o estreito caminho sobre o antigo aqueduto. Providências para sanar o problema? Estatísticas de roubos? Certamente que não. À turista, ficou a aventura sobre sua passagem pelos pais selvagem a ser contada na roda de amigos europeus.
Contando o dia da minha prova de campo no curso de guia, devidamente atrapalhada pelo ensurdecedor barulho que o bonde emitia, peguei o veículo mais duas ou três vezes, sempre por insistência de amigos desejosos em conhecer a boemia de Santa Teresa. Passei a preferir o trajeto de microônibus.
Desde a tragedia, há pouco mais de uma semana, venho pensando constantemente no condutor Nelson Correia. Teria ele me transportado em uma das minhas minguadas experiências pelos trilhos de Santa Teresa? Confesso a minha comoção indignada quanto vi a viúva do seu Nelson chorando em um telejornal defendendo o seu marido das acusações de que ele seria o eventual culpado por não haver recolhido o bonde depois de um problema técnico anterior ao acidente que o vitimou junto com outras quatro pessoas. Já está se tornando prática no Brasil: culpar os mortos pelos seus próprios assassinatos anunciados em razão do descaso de quem deveria zelar pelo nosso bem estar.
RIP, seu Nelson.

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