24 de julho de 2010

A Ferro e Fogo

Waldemar era Flamengo até morrer. Flamenguista daqueles emotivos, de não faltar a um clássico no Maracanã, de atormentar a vizinhança ouvindo o jogo pelo radinho em volumes cavalares, de assistir compenetrado as mesas redondas nos finais de domingos televisivos, de discutir com argumentos passionais cada lance das partidas no boteco da esquina. Tudo em honra ao querido mengão. Waldemar era fanático até as pontas das unhas.

Apenas um sentimento era capaz de igualar-se em calibre com o seu amor a equipe rubro-negra: o imenso ódio que Waldemar nutria pelo Vasco da Gama. Era algo irracional, um tanto infantil, fugindo a salutar rivalidade futebolística onde um sujeito gozava o amigo no trabalho ou no bar após uma goleada aplicada por seu time no maior adversário. As máximas que Waldemar cunhava a respeito do clube odiado assustavam seus interlocutores. “O caráter de um homem se mede pelo time que ele torce. Ser vascaíno é uma deficiência de caráter”, costumava dizer, solene, durante a roda de chope. Ao redor da mesa, não se ouvia uma voz clamar em protesto contra tamanha afronta, talvez por que Waldemar fizesse questão de não cultivar amizades que porventura torcessem pelo Vasco.

Solange, a esposa, muito fazia para diminuir tanto a ira vascaína quanto a idolatria flamenguista que o marido semeava. Lembrava a Waldemar os episódios em que conhecidos haviam se afastado do casal, sobretudo os que torciam pelo clube de São Januário e, sem esconder sua irritação, alertava não estar em condições de disputar o amor do esposo com um time de futebol.

— Você liga mais para este Flamengo do que para mim.

— Será que eu não posso ter uma diversão? Trabalho feito um mouro durante a semana. Não posso nem curtir o meu mengão aos domingos? – contra-atacava o esposo.

Ela tolerou seu fanatismo durante anos, mas quando Waldemar a presenteou com uma camisa do Flamengo em seu aniversário, Solange decidiu procurar um homem que lhe desse mais carinho e atenção.

Há algum tempo ela andava de olho em Claudinei, um desocupado do bairro, portador de um sorriso sedutor, bom de conversa fiada, que vivia zanzando pelos bilhares e pontos de jogo do bicho das redondezas e, segundo ouvira falar, vascaíno. O sujeito sempre a olhava com intenções devoradoras, cara de “tô querendo” e, na primeira oportunidade, surgida quando os dois se esbarraram dentro de um ônibus em direção ao Centro da Cidade, Solange se deixou fisgar pelo malandro.

Marcaram encontro para o dia seguinte em um motel vagabundo na Praça da Bandeira. Mal chegaram ao quarto, Solange foi logo perguntando:

— É verdade que o gato é vascaíno?

Em resposta, Claudinei, armado do seu mais caricato olhar sem-vergonha, livrou-se da camisa e exibiu o torneado braço esquerdo onde reluzia um imenso escudo tatuado do Vasco da Gama. Encantada, Solange languidamente lambeu aquela tatuagem para deleite de Claudinei que a tomou nos braços e a possuiu com voracidade. O malandro nascera para o ato sexual e fez coisas inimagináveis com Solange que, extasiada, cantarolou durante o gozo alguns versos do hino vascaíno que ensaiara de véspera para a ocasião. “Vamos todos cantar de coração, a Cruz de Malta é o meu pendão, Tu tens o nome de um heróico português, Vasco da Gama, a tua fama assim se fez”.

E os encontros dos amantes tornaram-se diários, sob o próprio teto do Waldemar. Bastava ele sair para o trabalho e Claudinei embiocava-se sem cerimônias casa adentro.

O flamenguista se descobriu traído no dia em que uma indisposição gástrica o fez voltar mais cedo do trabalho. Da sala Waldemar escutou grunhidos amorosos vindos do seu quarto e não precisou usar de todos os seus miolos para entender o que se passava por de trás da porta. Invadiu o quarto aos berros e a única cena testemunhada foi a da esposa tentando vestir-se atabalhoada e um vulto, só de calças, disparando quintal afora para em seguida pular o muro divisor do terreno vizinho. Do tal homem, Waldemar guardou em sua retina tão somente a imagem do distintivo vascaíno tatuado no braço.

Não conseguiu distinguir que dor o lancinava mais: a traição escancarada ou o fato do amante de Solange torcer pelo Vasco. Diante de uma esposa semivestida, descabelada pelos carinhos do desconhecido, paralisada pela vergonha e pelo medo de sua reação, um atônito Waldemar sentou-se mecanicamente em sua cama de lençóis em desarranjo e cheiro de sexo recente, contemplou o quadrado da janela, testemunha da fuga do sujeito que dormira com sua mulher e, munido de uma inacreditável fleuma, talvez por conta do choque, disse com a emoção de um zumbi dopado.

— Mulher... Me arranja um remédio pra dor de barriga. Hoje eu estou que não me aguento. Não sei o que comi!

Por semanas Waldemar catou em todo o bairro aquele que possuía impresso no braço a marca cruzmaltina de sua humilhação. Vasculhou nos pés-sujos, sinucas, mesas de carteado, campinhos de pelada, puteiros e nada. Claudinei, prudente e desconhecedor de que não fora identificado, pôs asas nos calcanhares e buscou exílio em outras bandas.

Os dias seguintes ao incidente transcorreram com Solange dominada por um estado de perplexidade aliviada, pois Waldemar continuou tratando-a como se o flagrante nunca houvesse se consumado. Não fosse a tristeza construída em seu olhar e o abandono da obsessão pelo Flamengo, a esposa juraria que ele era o mesmo de sempre, inclusive nas noites de sexo burocrático debaixo dos lençóis e tendo como única testemunha o brilho da lua invadindo o escuro do quarto. Nestes momentos de amor mecanizado, Solange quase chegou a admirar Waldemar, que escolhera por manter seu casamento ao invés do escândalo do adultério. Entrementes, debaixo de seu marido, ouvindo seus arfares, consumia-se em saudades de Claudinei. “Por onde andaria o safado?”

A pergunta que Solange se fazia, Reginaldo Meia-Bunda tinha a resposta. Seu apelido politicamente incorreto resultara de uma poliomielite contraída na infância que atrofiara toda a musculatura da perna esquerda, deixando-o manco. Desprezado pelas mulheres e objeto de chacotas dos homens do bairro, Reginaldo Meia-Bunda pouco tinha de distração além do exercício da maledicência e o prazer pela intriga. Ouvidos apurados, captou notícias aqui e acolá a respeito de uma possível traição da mulher de Waldemar e, como percebera o sumiço do vascaíno Claudinei por aquelas bandas, juntou as peças do quebra-cabeça e, deleitoso por um escarcéu, decidiu encontrar o fugitivo. De fuxico em fuxico Meia-Bunda logo chegou ao paradeiro de Claudinei, morando em uma cabeça de porco nas franjas do bairro de Santa Cruz.

E numa mesa de boteco, tendo por testemunhas parcas rodelas de salame como tira-gosto e duas tulipas de chope, Reginaldo Meia-Bunda revelou ao flamenguista o nome e endereço do amante de sua esposa. Waldemar, se perturbado pela notícia não demonstrou, pesquisou em sua mente alguma referência ao tal de Claudinei e encontrou uma vaga lembrança, meio desbotada, de uma inflamada discussão travada tempos atrás com um fulano sobre quem fora o melhor: Zico ou Roberto Dinamite? Não tinha certeza de tratar-se do mesmo personagem, mas isto não vinha ao caso agora. Perguntou a Meia-Bunda o porquê da delação.

— Por quê? – Reginaldo cutucou um pré-molar com a unha para livrar-se de um fiapo de salame preso entre os dentes antes de responder. — Por inveja! Pela mais pura e avassalarora inveja do sucesso de Claudinei com as mulheres. Algo que um manco de perna seca como eu nunca há de conseguir.

Uma torrente de desprezo invadiu Waldemar. Aquele dedo-duro, sentado a sua frente, a revelar choramingando agir movido apenas pelo sentimento de inveja, provocou-lhe náuseas. Reginaldo Meia-Bunda era pior do que sua mulher e o amante. Sujeito vil, X-9 de merda, que nada ganharia com a sua delação. Um cara mau, covarde e mau. Waldemar teve ímpetos de esbofeteá-lo ali mesmo, mas sabedor que necessitaria do manco para a realização do plano maquinado em velocidade recorde enquanto ouvia a sua nojenta caguetagem, conteve-se. Apertou o braço esquerdo de Meia-Bunda e, portando cínica ternura no olhar, pediu:

— Reginaldo, meu querido, nem tenho como agradecer sua preocupação. Você demonstrou ser meu amigo. Quando eu morrer, vou arrastar para dentro do meu túmulo a consideração que você teve comigo. Nunca esquecerei seu gesto e, em nome da nossa amizade, peço um último favor.

— Claro, claro, como negar?

— Preciso que você escreva uma carta para minha mulher, de preferência datilografada ou escrita num computador, se você tiver um, como se fosse o Claudinei marcando um encontro com ela, prá daqui uns quinze dias, lá na casa dele...

Reginaldo assustou-se diante da possibilidade de ser o responsável por um crime passional. Não imaginara que sua intriga pudesse ir tão longe.

— Tú vai matar o cara Waldemar? – perguntou em murmúrio aterrorizado.

O marido traído, sem largar o braço do manco, falou tranquilamente.

— Dou minha palavra de honra. Por São Judas Tadeu de quem sou devoto e pelo Flamengo, juro que não.

— Jura que nem vai capar?

— Juro...

Um par de dias após sua conversa com Reginaldo, Waldemar testemunhou uma certa alegria incorporada ao semblante da esposa e, concluiu, satisfeito, que o Meia-Bunda cumprira o combinado. Ao anoitecer, enquanto Solange tomava banho, remexeu os pertences da mulher descobrindo a carta. Ao correr os olhos pelas linhas datilografadas, o marido traído percebeu em Reginaldo dotes românticos e literários, tanto que chegou a enciumar-se do estilo do manco, cheio de mesuras e algumas pitadas de erotismo nas metáforas dirigidas a sua mulher. Mais uma vez controlou-se, anotou data e hora do encontro, devolveu a carta ao lugar onde a encontrara, tomou um comprimido inteiro do seu calmante predileto e deitou-se para dormir o sono dos justos. Ao sair do banho, Solange encontrou Waldemar a roncar, portando um estranho sorriso em sua face adormecida.

Na manhã seguinte Waldemar saiu bem cedinho de casa e, ao invés de ir ao trabalho, zarpou para uma serralharia lá pro lados da Piedade. Encontrou a loja fechada em virtude da hora e gastou alguns minutos do outro lado da calçada, esperando a abertura do comércio. Mal o estabelecimento ergueu suas pesadas portas de ferro, lá estava Waldemar falando com um sujeito gordo e suarento, aparentando ser o gerente.

— O que o senhor quer vai custar caro. É quase um trabalho artístico.

— Sem problemas. Eu pago.

— Não é comum uma encomenda dessas.

— Dá ou não dá pra fazer?

— Sim, é claro. É que eu fiquei intrigado. Nunca me pediram uma coisa assim.

— Sempre há uma primeira vez. Quando fica pronto?

Reginaldo Meia-Bunda andava tenso por aqueles dias. Desde a sua deduragem no boteco e o envio da carta a Solange, Waldemar não mais se manifestara. Meia-Bunda aguardou, preocupado, pela passagem dos quinze dias combinados para o encontro, fiando-se na promessa do flamenguista que não iria matar ou ainda castrar o rival. “E se ele fizesse algum mal a esposa?” perguntou-se agoniado, afinal, Waldemar não jurara pela integridade da mulher. Concluiu que não poderia confiar plenamente em juras ou promessas. “Quem mantinha sua palavra nos dias de hoje?” lamentou.

Dormiu um sono picotado na véspera do dia marcado. Acordou em sobressalto e mal raiou o dia, armou tocaia na porta da casa de Waldemar. Escondido, Reginaldo, presenciou o flamenguista sair para o trabalho e, quando duas horas depois uma perfumada e rebolativa Solange botou o pé na rua, certamente em direção a Santa Cruz, o manco pensou em aborda-la, fazer uma confissão, revelar-se um crápula, evitar que ela rumasse para uma suposta morte, mas ao imaginar a tríplice ira do marido, esposa e amante se abatendo sobre ele, na sua visão um pobre aleijado, preferiu calar-se e, resignado, acompanhou com as vistas uma Solange metida em um sensual vestido colante irradiando alegria pelos poros dirigir-se para o ponto do ônibus.

As horas custaram a passar e Reginaldo viveu aquele dia atormentado pela culpa do assassinato anunciado. Trancado em sua casa, de súbito, foi tomado pelo pavor de ter que se explicar à polícia caso Waldemar relatasse como descobrira a traição. Em sua mente pairou mil enredos acerca da morte de Claudinei. Waldemar usaria uma faca? Revólver lhe pareceu clichê. Infidelidade se resolvia na ponta de uma faca, cara a cara com o traidor, imaginou. No cair da noite, tentou espantar os pensamentos sanguinolentos de sua cabeça ligando o radinho de pilha mas, obra do destino, a estação sintonizada transmitia um popularesco programa policial.

“aonde vamos parar minha gente! É o império do crime, da maldade, do sadismo! Honra antigamente se lavava com sangue, agora honra é marcada a ferro e fogo, literalmente queridos ouvintes. Caso você duvide, preste atenção no drama acontecido hoje, no bairro de Santa Cruz. Waldemar Cristiano de Souza, 35 anos, vendedor, descobriu que sua companheira, Solange Maria Pinto de Souza, 30 anos, dona-de-casa, estava tendo um romance com Claudinei Adalberto Ribeiro da Silveira, 27 anos, sem profissão definida. Enfurecido, Waldemar invadiu a casa do Claudinei em Santa Cruz e flagrou o casal de pombinhos, digamos, namorando. Portando um revólver, ele amarrou e amordaçou os adúlteros e, com um ferrete de marcar gado, queimou todo o corpo do pobre Claudinei. Vingança planejada friamente ouvintes! Waldemar mandou fabricar o tal instrumento em uma serralharia da Piedade, como já confirmou em depoimento Antonio Sacramento, dono do estabelecimento. O mais inusitado ouvintes, foi o tipo de marca que Waldemar encomendou. Torcedor do Flamengo, o marido traído marcou em ferro incandescente o escudo do seu time de coração por todo o corpo do amante de sua mulher. E por qual time Claudinei torce? Pelo Vasco!!! O maior adversário do Rubro-negro! Claudinei está internado na unidade de queimados do Hospital do Andaraí e, segundo os médicos que o atenderam, irá sobreviver mas terá que conviver para sempre com o escudo do Flamengo cicatrizado por quase todo o seu corpo. Solange, ainda chocada com os acontecimentos, relatou aos policiais que Waldemar foi particularmente cruel com a tatuagem do emblema do Vasco que Claudinei trazia em seu ombro esquerdo, ferindo-o diversas vezes. O monstruoso Waldemar encontra-se foragido...”

Pálido, Meia-Bunda desligou o rádio. O único pensamento alojado em sua mente foi que Waldemar cumprira a palavra. Não matara, nem castrara...

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