24 de julho de 2010

Crônica Rodrigueana de uma Traição.

Amava as duas sem distinção. Eram suas mulheres, mães de seus três filhos. Rosalina lhe dera dois meninos, Marcela completara o trio. Eventualmente, Afonsinho se penitenciava por não ter feito mais um rebento em Marcela, achando que privilegiara Rosalina no número de crianças, tanto que, deu cambalhotas de alegria quando viu a barriga de Marcela crescer, anunciando mais um herdeiro. Dois a dois, peleja empatada. A criança no bucho restabelecera a justiça.

Pairava sobre ele o horror ante a possibilidade de estar beneficiando uma em detrimento da outra e por isto procurava dar tratamento igualitário às suas duas mulheres. O mesmo padrão de vida, carinhos equilibrados, presentes exatamente iguais. Ao atinar que o lugar onde ele morava com Rosalina três dias por semana ficava aquém em estrutura ao que vivia outros três com Marcela, mudou-a para o mesmo bairro, mesma rua, casas semelhantes em números de quartos e área construída. Afonsinho era um socialista e não sabia. Transbordando escrúpulos pelos poros, uma vez por semana, com o intuito de equilibrar possíveis diferenças em suas relações familiares, ele dormia em um hotel mixuruca no Centro da Cidade, sozinho, pois não cogitava de modo algum ter uma amante. No sétimo dia, biblicamente descansava.

O ousado plano em alojar suas esposas na mesma rua só foi possível por se tratar de uma avenida longa, a atravessar todo o bairro. Marcela ficou numa extremidade da rua, Rosalina na outra ponta. Possuía Afonsinho a crença de que esta estratégia impossibilitaria o encontro casual das duas. Para enganá-las, simulava trabalhar como vendedor pelo interior do estado. Assim, quando iludia uma das mulheres fingindo viajar a negócios, significava que estava com a outra esposa e, de acordo com este esquema, uma delas era sempre enganada. Em verdade, Afonsinho tinha um pequeno escritório de cobranças, fato que as duas desconheciam por completo. Ele vivia uma farsa de anos para não magoar seus dois amores e se ver desobrigado a optar por um dos seus lares, destruindo o preterido. Nem ele queria isto. Desejava, viver como estava vivendo, dividindo entre suas duas famílias.

Seu plano perfeito começou a ruir na sala de espera do consultório do Doutor Dinorah, um ginecologista muito conceituado por aquelas bandas. Um leve corrimento levou Rosalina à sala de espera do médico, justo ela que abominava exames ginecológicos. Acreditava estar sendo invadida no limiar da sua intimidade por um desconhecido olhando e, o cúmulo, tocando suas partes. Aliviou-se ao tomar conhecimento que o Doutor Dinorah era um ancião. Rosalina guardava ingênua fé de que os velhos fossem isentos de possuir alguma tara.

Desconfortável numa sala de espera apinhada de mulheres talvez com pudores semelhantes aos seus, Rosalina puxou conversa com uma daquelas grávidas que lotavam o ambiente. Marcela inicialmente respondia de maneira monossilábica e distante as dúvidas de Rosalina acerca das qualidades e distanciamento profissional do Doutor Dinorah, preferindo concentrar-se em uma típica revista amarelada de consultórios. Contudo, a simpatia irradiada por Rosalina era tão envolvente que as duas saíram do consultório direto para uma lanchonete como se fossem amigas do tempo de colégio.

Marcela, a menos ingênua da dupla, foi quem montou o quebra-cabeça da traição entre os salgadinhos, doces e refrigerantes espalhados pela mesa que ocupavam. Um curto diálogo revelou que ambas possuíam um marido chamado Afonso, profissão vendedor, alguns dias da semana viajando. A prova incisiva estava em uma foto que Rosalina trazia consigo. Marcela viu a crápula figura do marido, sorriso de político em campanha de eleitoral costurado nas fuças, entre duas crianças rechonchudas, tendo Rosalina, como adorno da foto a completar o quadro da família feliz. Os que estavam dentro da lanchonete imaginaram se tratar de duas fugitivas de um hospício em razão dos berros e ataques histéricos em dueto. A dor conjunta, ao contrário de acirrar rivalidades, transformou a dupla de mulheres em cúmplices de uma vingança.

Afonsinho voltou contente do trabalho naquele tarde. Dirigia-se para o seu lar dividido com Rosalina após a estada em companhia de Marcela. Os dias haviam sido agradáveis junto ao filho e a mulher grávida, mas batia uma saudade dos afagos de Rosalina e da presença de seus outros moleques. Enfiou a chave na fechadura de casa pensando no quanto ele fora agraciado por ter duas mulheres tão encantadoras que haviam gerado filhos maravilhosos. Estranhou o silêncio da casa. Vasculhou os cômodos desertos enquanto chamava pela mulher. Chegou a imaginar que uma das crianças estivesse em alguma emergência de hospital. Assustado, procurou um telefone para tentar localizálos. Enquanto discava, percebeu uma série de fotografias espalhadas pela mesa onde estava o aparelho. Sua respiração travou, coração pulsou mais forte e de início seu cérebro pareceu não assimilar o que seus olhos captavam: uma seqüência de fotos mostrava Rosalina nua, acompanhada de um homem de corpo bem definido, dragão tatuado no bíceps. As expressões da mulher nas fotos denunciavam que ela estava se divertindo bastante em companhia daquele sujeito. Desesperadamente surpreendido, Afonsinho procurou nas fotos explicação para o que se sucedera. Em uma delas, presa por um clipe, a lacônica mensagem em um pedaço de papel: “Adeus”.

Procurou pela mulher e filhos na casa de diversos parentes. Ninguém conhecia o paradeiro de Rosalina. Alguns até se espantaram com a notícia de sua fuga, por julgar o casamento deles um exemplo de harmonia. No segundo dia, Afonsinho, transtornado, se embebedou. No terceiro, espantou-se com o seu próprio conformismo e decidiu voltar para a família que lhe restara.

Sentiu um calafrio invadir sua alma ao dar com a casa vazia. Mecanicamente, procurou por um embrulho de fotos. Lá estava ele, próximo ao aparelho de telefone. Diante da coincidência de fatos, compreendeu o que se passava. Ainda relutou em espiar as fotografias mas, não conseguindo evitar, testemunhou impressa em papel fotográfico a imensa barriga de Marcela acariciada pelo mesmo homem nu, cujo dragão tatuado aparecia de forma mais nítida, destacando uma obscena língua vermelha e bifurcada. Tal ocorrido lhe pareceu uma vingança mais dolorida que a primeira, porque Afonsinho nutria fé na castidade de uma grávida, não cogitando a possibilidade de prenhas terem desejos sexuais. Ele mesmo evitara Marcela durante o crescimento de sua barriga. Em prantos, leu o bilhete escrito em letras caprichadas da sua segunda mulher, preso a um clipe de forma idêntica ao encontrado na casa do outro extremo da rua. Mais prolixo do que o deixado por Rosalina, o recado compunha-se de apenas uma reveladora e sarcástica rima pobre: “Quem com duas mulheres decidiu viver, duplamente corno há de ser”.

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