12 de março de 2011

Medos, Mitos e Ingenuidades Infantis

Cientistas descobriram recentemente que os dentes de leite são um manancial de células-tronco e já estão recomendando os pais para guardarem os dentinhos dos filhos da mesma forma que hoje se armazenam os cordões umbilicais para uma eventual necessidade futura de seus rebentos. Caso eu tivesse uma bola de cristal e ficasse sabendo com antecedência desta descoberta, não teria, durante minha adorável criancice, vendido meus dentes-de-leite para a Fadinha do Dente.
Vendi sim, pela bagatela de 50 centavos de cruzeiros cada dente. Quando eles não se sustentavam mais dentro da minha boca, lá ia eu alegremente deixá-los na janela da casa para que a Fada do Dente desse o destino que ela achasse conveniente. Não podia duvidar de sua existência, pois cada dente depositado à noite era metamorfoseado em uma moeda no dia seguinte. Eu não estabelecia preços, a Fada que julgasse o quanto meus molares, pré-molares e aprendizes de caninos valessem. Deixei de crer na Fada no dia em que um dente jazeu por dias no parapeito da janela. Foram tempos difíceis, em que cada moeda deveria ser empregada no orçamento doméstico em detrimento dos sonhos de infância.
Além da Fada do Dente, eu cria piamente nos Corpos Secos, entidades que viviam na laje do prédio onde eu morava. Sofria torturas psicológicas, era ameaçado de ser enviado para um exílio no forro do edifício caso não comesse, pois lá era o lugar de corpos secos. Amedrontado, devorava minha refeições com medo do meu futuro em cima da laje.
Creio que na categoria monstros, só mesmo o advento do Camisurê, criatura sem forma definida que só a menção do seu nome aterrorizava o meu sobrinho de cinco anos. Dizem que os Camisurês moram debaixo das camas das crianças e as assustam quando elas à noite se aventuram pelo breu da casa. Criação de uma tia minha para manter seu neto sossegado durante as madrugadas, o Camisurê talvez seja a única assombração infantil de caráter exclusivo, só o meu sobrinho acreditava nele. É possível que, com o seu crescimento, a raça dos Camisurês tenha sido extinta da face da Terra.
Eventualmente, os medos infantis escoram-se em possibilidades reais, ainda que improváveis. Passada a fase de fadas e monstros, fui tomado pelo pânico de ser atingido pelo Skylab, primeiro laboratório espacial que, devido a uma pane, caiu na Terra. Como era a primeira experiência humana neste tipo de acidente, ninguém sabia ao certo onde o laboratório cairia e se o Skylab se desintegraria em contato com a atmosfera terrestre e, mesmo que tal fato acontecesse, pedaços da geringonça espacial poderiam atingir algum terráqueo azarado. Por semanas não consegui dormir direito esperando o fim do Skylab e só me acalmei quando soube que ele havia caído em um deserto despovoado na longínqua Austrália – não tão distante assim, afinal, o mundo é redondo. Deu um friozinho na barriga ao ver que o maior pedaço recolhido do Skylab era uma enorme porta, capaz de provocar um belo estrago na cabeça de alguém.
Hoje, infelizmente, Bichos Papões não assustam mais as crianças. O perigo é real e imediato, na forma de balas perdidas ou Caveirões, apelido dado pela população carioca aos veículos blindados utilizados pela polícia do Rio de Janeiro quando em missão dentro das favelas. Saudades da ingênua infância. Medo da realidade adulta.

Menção Honrosa no Prêmio Cidade de Porto Seguro de Crônicas - 2008

Um comentário:

  1. hahaha, achei que o skylab que ia te acertar era o músico doidão.
    outra criança com seu monstro particular era meu vizinho. como eu vivia assustando o moleque, a mãe dizia que ia me chamar quando ele não comia. dai aconteceu que o rapaz ficou diabético e morrou três anos no hospital. lá, a mãe continou a assombrá-lo comigo. só a menção do meu nome era capaz de fazê-lo se mijar.
    quando fez uns 16 anos conversamos e ele me contou seu pavor. rimos. ele tem uns 22 hoje, tá bem, mas às vezes o pego me olhando meio assustado.

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